quarta-feira, 7 de março de 2012

XI – Difíceis escolhas

Você, seus amigos e parentes e eu também, gostamos de coisas boas, bonitas e de qualidade. Isto não é ruim, a menos que tenha a ver com discriminação ou preconceito. Pessoas, por exemplo, não escolhem ser feias ou bonitas, magras ou gordas, pobres ou ricas, então, não é justo que gostemos mais ou menos de uma pessoa por critérios como estes.
É claro, porém, que com coisas, casas, e até frutas, isto seja diferente: podemos gostar de uma coisa mais ou menos em função da aparência, do tamanho, da cor e assim por diante.
E com as azeitonas, isto não é diferente. Durante a catação, são feitas escolhas baseadas no tamanho, na cor, no brilho, na textura e no cheiro. Desde bem pequenas, as crianças aprendem a separar as azeitonas colhidas conforme suas características, e classifica-las para diferentes destinações. Há então as azeitonas que serão usadas para o azeite, para as conservas, para a pasta de azeitona, para o plantio e, não menos nobre, para os compostos de esterco, que adubam as outras plantas.
Nenhuma criança ou adulto normal acha que está fazendo algum tipo de discriminação ao escolher as azeitonas, mas muitos, em seu intimo, preferem escolher mais azeitonas bonitas (aos seus olhos) do que feias (também aos seus olhos). Existe assim, uma competição velada, mesmo que não haja nenhum prêmio para quem seleciona mais de um tipo ou de outro tipo. A única e severa exigência, é que nos toneis reservados para cada tipo de azeitona só exista aquele tipo específico. As misturas resultantes de seleções mal feitas causam problemas na preparação final das azeitonas para seu consumo, e, para isto existem prêmios: o prêmio 100% pureza, o prêmio uniformidade, o prêmio velocidade. Todos recompensam a execução perfeita do trabalho, mas não o tipo de azeitona selecionada.
Logo cedo, pequenos grupos se reunem ao redor de determinadas oliveiras e é fácil ver pessoas mais velhas apontando para o chão, segurando uma azeitona e olhando atentamente para ela contra o sol, gesticulando os braços e falando muito, sempre se direcionando para uma plateia muito atenta e interessada de crianças, jovens e outros adultos. São como mestres que conhecem em detalhes todas as características dos frutos, que sabem como extrair o maior potencial possível de cada pequena azeitona e como melhor aproveitar as habilidades de cada habitante do vilarejo para que todos se sintam além de felizes, realizados.
As crianças menores, de 2 ou 3 anos, ficam brincando de colher e selecionar, mesmo que depois tudo o que elas fizeram tenha que ser refeito, e, muitas vezes, os mais experientes se surpreendem ao ver o quão bem as pequenas crianças fizeram a seleção. Parece algo mágico, mas na verdade é como um instinto.
A pequena Salete era uma dessas crianças que desde muito cedo tinha essa habilidade de selecionar com perfeição os frutos, compondo com grande velocidade toneis perfeitos, com azeitonas todas da mesma cor, textura, tamanho e grau de maturidade. Aos 4 anos ela ganhou dois prêmios só na parte da manhã, o de velocidade e o de uniformidade. Aos 6 anos, era ela que ficava ensinando os outros em uma rodinha sob a oliviera da esquina com a rua dos Barcos, perto da casa da avó, onde ela morava. Os grupos que ela orientava sempre se destacaram pela qualidade do trabalho.
Já o Rufião era um preguiçoso que apesar de adorar o festival, não tinha o menor jeito para a coisa: ficava na sombra, fazendo caminhos pelo chão, formando desenhos com as azeitonas de diferentes formas e cores e nunca participava dos eventos e jogos.
Essa é a cor da festa: todos os tipos de pessoas, todas as vontades, a tolerância, a alegria e o desprendimento e principalmente a união em torno de um ideal de vida comunitária, de respeito mutuo e de sebedoria, da garantia de que no ano seguinte tudo será melhor ainda do que neste

terça-feira, 6 de março de 2012

X – O festival da catação

Há eventos cíclicos importantes, como por exemplo o sol nascendo todas as manhãs, a lua enchendo de luz o céu a cada 28 dias, a primavera a perfumar os bosques logo após os invernos, as regras das mulheres, as refeições a cada 4 horas as séries de Fourier e assim por diante. Físicos, biológicos, matemáticos ou astronômicos, não importa a natureza, não há evento cíclico tão esperado quanto o festival da catação.
Pode até parecer exagerado, mas é preciso entender o contexto: uma cidade que nasceu e cresceu vendo isto acontecer, tentando enteder os porquês e as razões – e sem ter um velho sábio andarílho espanhol para explicar ou ajudar.
Pode ser até que hoje em dia, datas como a Páscoa, o Natal ou mesmo o Halloween sejam muito aguardadas pelos moradores – principalmente por influência da igreja católica e da televisão (sem querer igualar as duas coisas) – mas nada se compara, nem de longe, ao festival da catação: um dia que não está no calendário, que não tem um santo, que não tem um fato histórico nacional, mas que, por outro lado, está tão enraizado na vida das pessoas quanto a necessidade de respirar, de ter o sangue circulando nas veias ou de dizer bom dia todas as manhãs.
Mais do que isso, é algo que tem sido vivido pelas gerações, pelas crianças, por seus pais, pelos avós, pelos bisavós (alguns já falecidos), pelos tataravós (muitos deles já falecidos), e por todos os demais falecidos mas que sempre estarão vivos na memória e na vida dos que vivem.
O dia da catação é antes de mais nada um dia de louvor ao trabalho duro e à recompensa que nos é oferecida por um trabalho bem realizado. O prêmio nos é dado por aquele que é o único capaz de nos recompensar – ou aquela, como queiram: o Senhor do mundo – ou a mãe natureza. Não importa, é a mesma coisa, um ou outro são entidades além do que podemos compreender, porém inteiramente relacionados conosco, ou com os habitantes do vilarejo.
A lista de preparativos para o festival da catação é extensa e para que tudo fique pronto à tempo, muitos dias são necessários. O mais impressionante, entretanto, é que não há qualquer tipo de dotação orçamentária da prefeitura ou do governo. Também não há nenhuma empresa responsável pela organização do evento, nem tão pouco divulgação pela televisão, rádio ou internet, nas redes sociais. Não há quem se atreva a promover vendas especiais ou sugerir que se compre alguma recordação ou mesmo camisetas comemorativas da data – que não é uma data fixa, mas aproximada.
Estranho, você diria. Concordo, mas repito que é preciso entender bem o cotexto. Não vou ficar explicando. Mergulhe com vontade e entre dentro da cidade-vilarejo e enxergue na alma de cada morador a importância de tudo isso. Não há nada de complicado; o que existe é uma simplicidade incompreensível.
De onde saem as lonas estendidas no chão?
Quem prepara os sucos de frutas e os doces e salgados servidos à vontade nos dias de festival?
Por que os passaros que gralham se esforçam para não estragar os frutos?
Quem escolhe tão criteriosamente as roupas de cada um para o evento?
Quem decide quantas e quais brincadeiras vão haver, desde pirâmides humanas, competições de força – invariavelmente vencidas pelo menino de 8 anos já pai de família – concursos de culinária, correios elegantes e tantas outras?
Quem cuida da limpeza antes, durante e após o festival?
Não pense que existe um nome ou um departamento responsável. Tudo acontece organicamente como se a cidade fosse um ser vivo, e seus habitantes as células, conscientes de sua importância e papel.
E ao final, todos sentem que este organismo cresceu e melhorou. Todo ano acontece desta forma, e, a julgar pelo que vejo hoje, vai continuar a acontecer por muitos e muitos anos...
Reza a lenda que o primeiro festival aconteceu quando ainda as pessoas viviam em clãs, cada família liderada por um ou mais guerreiros que defendiam suas propriedades – casas simples feitas de pedras e recobertas por todo tipo de vegetação que se parecesse com palha.
Naquele tempo, era comum haver incêndios e mortes causadas por fenômenos naturais, desde chuvas, inundações, ventos muito fortes e assim por diante.
Na maioria dos lugares onde havia algum tipo de civilização, as clãs se degladiavam e saqueavam-se umas às outras. Alí, porém, as coisas eram diferentes desde muito antes: como havia as árvores no local que hoje é chamado de praça central, todos se sentiam atraídos por aquele local que parecia ter algum tipo de magia ou coisa sobrenatural. Ficavam as clãs alí a observar na sombra do arvoredo, a ouvir os pássaros que gralham – e que já naquele tempo gralhavam – e a rir com as manobras arrojadas que eles faziam nos ares.
Com isto, moças de uma clã encontravam-se com rapazes de outras clãs, e assim começavam a observar os pássaros juntos. Bem, o resto da estória não preciso contar – pelo menos não agora, porque na verdade, alguns desses encontros valem ser descritos em detalhes de tão bonitos que eram, mas o que importa é que as clãs, ao invés de serem rivais, uniam-se em torno da praça central. Formou-se então o que talvez tenha sido a primeira comunidade, onde cada um ajudava o seu próximo naquilo que fosse necessário, e, em louvor ao que deu origem a essa comunidade, instituiu-se o que hoje é chamado de festival da catação.
Incialmente apenas os casais participavam, meio como se fosse um ritual de fertilidade que representava a capacidade das famílias crescerem e progredirem, mas não demorou muito para que todos na agora cidade, participassem de todas as etapas da festividade.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

IX – A menina muito magra

Numa propriedade muito bonita, onde tudo que fosse plantado nascia mais bonito do que nos outros lugares, vivia uma menina muito magra e muito fraquinha. Nada ela queria comer, nada ela queria fazer. Achavam até que ela tinha uma doença chamada bulimia, mas isso não era verdade, porque ela também se achava magra demais.
A menina muito magra passeava no meio do pomar e olhava todas aquelas árvores com frutas suculentas: macieiras com maçãs vermelhas e lustrosas, pessegueiros com pêssegos tão cheirosos, pereiras com macias pêras amarelas, goiabeiras, figueiras, abacateiros, limoeiros e pés de laranja. A lista é imensa, mas acompanhando a caminhada da menina muito magra, ela passava pelo imenso trigal e acabava sempre chegando à enorme oliveira que ficava no alto do morro. Apoiada em seu esqueleto que se equilibrava não se sabe como, de tão pouca carne e tão pouco músculo - bem ao contrário do menino de 8 anos que depois ficou mais velho - a menina muito magra sentava-se à sombra da oliveira e ficava olhando meio de lado para a vista de lá de cima.
Sempre em sua casa havia todo o tipo de fruta, todas graúdas, suculentas e saborosas. Todas saudáveis e doces. Acontece, porém, que a menina muito magra olhava para a oliveira e via aquelas frutinhas verdes, douradas, marrons e roxas e ficava pensando em como seria o gosto das frutas. Por ser muito antiga e por nunca ter sido podada, a oliveira acabou ficando muito alta. Os frutos ficavam bem lá encima e ninguém alcançava. Na propriedade, ninguém se arriscava a subir na árvore, mesmo porque, só tinham experimentado as azeitonas caídas e acharam o gosto horrível. E ninguém sabia como prepará-las. A menina muito magra ficava chateada, porque ela não achava justo não poder comer os frutos da árvore que ela considerava a mais bonita, e, por causa disso, não tinha interesse em comer os frutos das outras árvores mesmo que ela também as achasse bonitas.
Nesta noção de igualdade bastante distorcida, a menina muito magra acabou não querendo comer também os ovos das melhores galinhas, as carnes dos melhores animais de abate e nem querendo beber o leite das mais saudáveis cabras e vacas leiteiras.
As cozinheiras da propriedade faziam de tudo para que a menina muito magra se animasse e comesse alguma coisa, mas não tinha conversa. A pobre mãe rica da menina muito magra chorava escondida de tanta tristeza e todas as noites, enquanto a esquálida filha dormia ela ia até o quarto dela e com uma pequena colher, colocava na boca da filha um pouco de sopa diluída para que ela engolisse sem perceber. Quando a menina muito magra não engasgava ela se nutria um pouco, mas isto não era suficiente.
Um dia passou pela propriedade um homem muito velho e sábio vindo da Espanha conhecido como o sábio andarilho. O sábio andarilho buscava como de costume a essência da vida, como se fosse possível que isto fosse encontrado. Em muitos cantos do mundo ele havia estado, lugares de fartura, de bonança, mas também de miséria e de tristeza. Nestas andanças todas, ele achava partes do sentido da vida, mas sempre considerava que faltava algo.
Quando o caso da menina muito magra foi levado até o sábio andarilho, ele logo achou que mais um pedacinho do sentido da vida estava ali, e não demorou muito tempo até que o sábio andarilho e a menina muito magra se encontrassem a conversar no alto do morro sob a sombra da oliveira.
Logo no início o sábio andarilho não entendeu porque os frutos de uma oliveira tão bela não eram usados. Nas conversas com a menina muito magra ele foi descobrindo que ali ninguém sabia das propriedades e das utilidades das oliveiras. Ninguém sabia que o fruto comido direto do pé era muito ruim - apesar de o menino de 8 anos não concordar - mas que após o devido preparo, ficava uma delícia.
E durante meses os dois caminharam juntos pelo campo de trigo, pelos pomares, pela granja e pelos currais. Iam até o rio, olhavam a pequena cascata e conversavam, conversavam e conversavam.
O andarilho sábio resolveu então combinar com a menina muito magra que eles fariam uma poção mágica que curaria a magreza dela. Esta poção seria um segredo só dos dois, e todos ficariam espantados com o resultado. E com isto, o esperto do sábio andarilho, ensinou à menina muito magra como colher as azeitonas do alto da oliveira - eles usavam cestinhas na ponta de varas muito longas - e a extrair das azeitonas o líquido dourado. Tudo feito escondido numa cabana sob a oliveira. Demorou muito tempo até juntarem 6 quilos de azeitonas, até espremer tudo e fazer escoar todo o azeite. A menina muito magra olhava, anotava em um caderninho com cadeado, e com o passar do tempo fazia tudo o que aprendia. A menina muito magra não sabia quanto tempo levaria para que ficasse pronta a poção, mas o sábio andarilho dizia a ela que ainda que ela sentisse vontade de provar o líquido não poderia pois ainda não estava pronto.
Até que um dia, após coar uma última vez o líquido, eles colocaram em uma garrafa de vidro quase um litro e olharam contra o sol. Os olhos da menina muito magra brilharam, um sorriso surgiu em seus magros lábios e uma lágrima escorreu dos olhos do sábio andarilho.
- Posso beber agora a poção? - perguntou a menina muito ansiosamente.
- Não magérrima menina - respondeu o sábio andarilho - lembre-se de que você nada quer comer ou beber, e, além disso, a poção não está pronta ainda.
No dia seguinte, saíram os dois para fazerem a mesma caminhada e o sábio andarilho foi explicando como seria a finalização da poção. A menina muito magra foi anotando tudo:
No limoeiro devia ser colhido o melhor limão maduro, e só um limão, no moinho do trigal deviam ser pegas duas xícaras de farinha soltinha e fresca; da melhor galinha deveriam ser escolhidos 2 ovos grandes; da mais bela vaca deveria ser ordenhado um copo de leite e da grande árvore de canela deveria ser retirado um pedacinho da casca.
À noite levaram tudo até a cozinha da grande propriedade, mais o vidro de azeite e um feixe de lenha, e acenderam o grande forno no meio da cozinha. O sábio andarilho separou ainda da dispensa da cozinha uma xícara de açúcar, uma colherinha de fermento que era usado nos pães e um pouco de sal.
O sábio andarilho disse então para a menina muito magra que a poção só funcionaria se ela mesma a preparasse, e, assustada mas ao mesmo tempo muito orgulhosa, a menina muito magra foi seguindo as instruções do sábio andarilho.
- Forre uma forma com papel vegetal (naquele tempo não havia papel alumínio) e derrame um pouco do azeite sobre o papel. Isto não faz parte da poção, mas não deixa que ela grude na forma. - Explicou o sábio andarilho.
- O limão que você escolheu deve ser bem lavado e você deve ralar a casca em uma tijelinha. - Continuou o sábio andarilho.
A menina muito magra olhava para o sábio andarilho pegava os apetrechos balançava o frágil corpo, ficava nervosa, mas ia fazendo tudo direitinho. Depois, o sábio andarilho disse a ela para peneirar a farinha em um pote limpo e misturar as raspas da casca do limão.
Enquanto isso, o sábio andarilho, como era sábio, resolveu ele mesmo, quebrar os dois ovos em outra tigela e batê-los bem junto com uma pitadinha de sal que a menina muito magra acrescentou. A menina muito magra ficou preocupada, achando que a poção não funcionaria, mas o sábio andarilho riu pondo as mãos na barriga e disse com um sotaque espanhol muito forte: - Porque você não acredita num velho sábio pequena magérrima? E foi tão convincente o sábio andarilho que daí em diante os dois foram fazendo tudo juntos: misturaram pouco a pouco o açúcar da xícara aos ovos e mexeram bem, depois colocaram uma xícara do azeite que eles tinha feito e foram mexendo, depois deitaram todo o leite sobre a mistura e continuaram mexendo e finalmente adicionaram a farinha que tinha sido peneirada e foram mexendo.
Cada vez mais a menina muito magra ia ficando espantada, pois a tal mistura foi ficando mais espessa, de uma cor muito bonita, clara como a cor da pele dela e, quando a mistura ficou bem uniforme, os dois despejaram na forma que a menina muito magra tinha preparado espalharam mais açúcar por cima até ficar branquinho e depois a menina muito magra ralou a casca de canela enquanto o sábio andarilho disse as palavras mágicas: - Cresça e não fique magérrimo!
Colocaram a forma dentro do forno onde a lenha mantinha uma temperatura de uns 150 graus e ali deixaram por uma meia hora. Em seguida, abriram e a menina afoita quis logo pegar um pedaço do bolo que tinha um cheiro realmente mágico, mas o sábio andarilho não deixou e disse:
- Se você não esperar pelo menos uns dez minutos até que a poção esfrie, nada vai funcionar - Ele sabia que a menina muito magra iria se queimar...
Esperaram tão ansiosos quanto um pai esperando o nascimento do filho na maternidade e, finalmente chegou o momento: o sábio andarilho aguardou em silêncio e como que por mágica, a menina muito magra cortou uma fatia a saboreou, ah, como ela saboreou! Depois comeu mais um pedaço, e outro ainda. O que sobrou, ela guardou em uma caixa de metal e no dia seguinte serviu aos pais explicando:
- Esta é a forma de comer os frutos da grande oliveira!
Os pais e nem ninguém mais viu o sábio andarilho que saiu dias depois após despedir-se da menina que já não era tão magra e agradecer a ela pois mais um pedacinho do sentido da vida ele tinha descoberto: como fazer alguém feliz e realizado.
A menina, desde então, usou a poção muitas vezes e foi misturando outros ingredientes, como maçãs, suco de laranja e outros, mas sempre fazia a poção original.
Na grande propriedade não havia quem não ficasse na porta da grande cozinha esperando o momento em que ficava pronta mais uma fornada da poção, tudo isso graças ao sábio andarilho que sabia como extrair o líquido mágico da oliveira.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

VIII – A escolha do destino

Ao abrir os olhos, a azeitona preta ainda viu a azeitona verde dando risada com as outras azeitonas passeadeiras. Aquilo parecia uma continuação do sonho: uma brisa, um calor da manhã, o barulho das risadas... Era como se ela estivesse vendo a cena junto ao mar. Nisso, a azeitona verde parou e deu uma risada olhando para a azeitona preta.
- Dormi! - Exclamou a azeitona preta.
- Como pode dormir num momento importante como este? - Perguntou a azeitona verde, que na verdade considerava todos os momentos importantes. - Dentro de alguns instantes vai começar o festival e nossos destinos serão marcados!
O festival, ao qual a azeitona verde se refere, é o festival da catação, como costumam chamar na cidade. Sempre na época em que caem as azeitonas por causa das bicadas dos pássaros que gralham nos cabinhos das azeitonas, é feito o festival: a praça é toda coberta com lonas, dias antes, tudo é bem limpo, e as pessoas evitam entrar na praça para não sujar nada. Só entram as mulheres que trocam o vestido branco da estátua da menina do vestido branco e a camisa vermelha do menino da camisa vermelha, os funcionários da prefeitura que cuidam da limpeza do pequeno lago regado pela cascata dos borbotões e mais ninguém. Os preparativos começam três ou quatro dias antes do dia do festival.
Dias depois do festival da catação, acontece o festival da colheita, que é para colher aquelas azeitonas que já estão no ponto, mas que, por um motivo ou outro, não tiveram seus cabinhos bicados pelos pássaros que gralham.
- Nosso destino está marcado desde o dia em que brotamos. - Respondeu a azeitona preta como se soubesse de tudo.
- Não, não é verdade! - Revoltou-se a azeitona verde. - Nosso destino vai sendo mudado o tempo todos! Nós podemos mudar o nosso destino! Nós podemos escolher o que queremos ser, qual será nossa função social!
- Talvez... - Duvidou a azeitona preta muito cética. - Já ví muita azeitona que queria ser petisco e no fim virou azeite... Nem azeite virgem era, mas do misturado.
A azeitona verde pensou que, desta vez, quem estava sendo preconceituosa era a azeitona preta; lembrou-se da discussão que teve sobre as azeitonas verdes serem melhores e retrucou:
- Qual o problema de virar azeite? Você sabe que mesmo as uvas não se importam de virar vinagre, se elas podiam virar vinho...
Mas no fundo no fundo, nem a azeitona verde e nem a azeitona preta queriam ser azeite. Isso era uma espécie de tabu até entre todas as azeitonas. Alguns relatos diziam que as azeitonas que não eram muito vistosas acabavam sendo usadas para o azeite. Isso não era comprovado, e, de fato, não era verdade e nem é. Nas grandes propriedades, há plantações inteiras que se destinam só à produção do azeite, mesmo que o fruto seja da melhor qualidade para ser usado como petisco.
- Eu não sei... - Relutou a azeitona preta. - Nunca contaram direito as coisas, mas pelo que sei, para fazer o azeite, somos espremidas e pressionadas e vamos secando, secando...
Houve um silêncio terrível, algo que nenhuma das duas queria pensar e que, no entanto, era inevitável.
- Espremidas? - Repetiu a azeitona verde como se estivesse dizendo o óbvio. - E então, qual o problema, madurão?
- O que é isso de madurão? - esbravejou a nem tão madura assim azeitona preta. - Porque não respeita um pouco o sentimento dos outros?
- Desculpe-me, mas você é um bocado sensível, não? Não estou querendo te ofender, só estou brincando. - Justificou-se a azeitona verde - E, além disso, você está se preocupando à toa: não é preciso temer algo que é tão normal, algo que faz parte de nossa função social.
A tal "função social" era como um mantra para a azeitona verde e para a maioria das azeitonas. Era um deus oculto que se manifestava a cada temor delas. Por isso, a azeitona preta sabia que, por trás das palavras da azeitona verde havia também um grande receio.
- Certo, então, mas você não se importa em ser transformado em azeite? - Insistiu a azeitona preta.
- Vou te contar algo que minha avó descreveu e que me faz pensar diferente de você. - Começou a azeitona verde. - Mas antes, respondendo a sua pergunta, eu, na verdade, tenho muita vontade mesmo, é de ser o enfeite de um prato de bacalhau...
A azeitona preta ficou esperando e pensando na opção da azeitona verde. Nem teve muito tempo de pensar porque a azeitona verde começou a contar o que dizia a avó dela.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

VII – O menino de 8 anos

Ninguém acreditava que fosse possível ou até que fosse saudável, comer uma azeitona que não tivesse passado por este processo. Claro que não era assim como no sonho da azeitona preta, e as azeitonas não ficam na praia brincando enquanto se salgam. O que acontece, é que depois de colhidas, as azeitonas são levadas até enormes tonéis com água e sal e ali ficam num processo chamado de "cura", que é como se fossem cozidas sem que seja preciso levar ao fogo. Quando isto é feito, alguns componentes da azeitona que são bem ácidos e amargos são "puxados" para fora pela força do sal. Mas isto não é assim fácil não: tem uma porção de truques e etapas que só os grandes preparadores de azeitonas conhecem, e tem também temperos que podem ser acrescentados como pimenta, ervas, folhas de loro, alho, suco de limão e outras coisas. Pode levar 15, 20 dias, 1, 2 e até 3 meses, sempre trocando a água e o sal, até que fique realmente bom! Se não trocar, embolora, fica uma porcaria só... Para cada uso é uma receita diferente. Só que no sonho da azeitona preta, ela sonhou aquilo que sempre foi contado a ela, e, aquilo que sempre se avistava do alto das oliveiras, um mar infinito e momentos de descontração. Mas um banhão de tonel também parecia, para as azeitonas, algo muito divertido. Azeitonas são muito criativas, fazer o que...
Acontece que um garoto de 8 anos ficou famoso na cidade depois que foi visto comendo direto dos ramos da oliveira, as frutas que iam amadurecendo e até as mais verdinhas. As outras crianças achavam graça e tentavam fazer igual, mas saiam cuspinho pedaços para todos os lados, ficavam com a boca amarrando e à noite tinha dores de barriga e enjoos. O garoto de 8 anos, por sua vez, morria de rir e comia mais e mais azeitonas. A tia dele, que trabalhava no serviço de saúde, preocupada, chamou alguns médicos para estudarem o caso, mas, ninguém se arriscou a estudar o assunto mais aprofundadamente. Todos que experimentavam as azeitonas "in natura" achavam horrível, mas o garoto de 8 anos comia, ria e comia. Quase mais nada ele comia, só um tanto de leite de vez em quando. O espantoso era que o menino de 8 anos era forte como um touro, corria velozmente pelas ruas e carregava mais peso que um adulto. Ninguém tinha coragem de dizer que era por causa das azeitonas colhidas do pé e ninguém tinha coragem de tentar seguir o mesmo regime dele. O menino de 8 anos foi crescendo - e é claro, deixou de ser o menino de 8 anos - sempre forte, trabalhador e bem disposto. Passou a gostar muito de azeitonas curtidas também, mas nunca deixou de comer as azeitonas do pé.
Hoje, o menino de 8 anos deve ter uns 50 e tantos anos, mas todos acham que ele tem menos do que 30, de tanta saúde que ele tem. Não é difícil vê-lo na praça central, nas horas de folga, escolhendo frutos graúdos e lustrosos e saboreando com vontade. Antes as pessoas se espantavam mesmo, olhavam com cara de nojo, torciam o nariz, as mães tapavam o rosto dos filhos pequenos e, os mais incautos tentavam fazer igual e saiam tossindo e cuspindo. Hoje não, o menino de 8 anos - que tem mais de 50 e parece ter menos do que 30 - é figurinha conhecida e todos passam e cumprimentam, todos admiram seu porte atlético e sua risada solta, todos conversam com ele, e até, muitos produtores da região e até de regiões bem distantes, pedem que ele prove as azeitonas para saber quando é o melhor momento de colher, qual o melhor tipo para plantar, quanto de sal deve ser usado, quanto limão e assim por diante.
As azeitonas no pé ficam todas agitadas quando ele passa por perto, e, no meio delas, ser apanhada pelo menino de 8 anos - que não tem mais 8 anos - é considerada uma grande honra. Todas clamam que, assim como o monumento à Eulália a juíza e as estátuas das duas crianças, deveria ter também uma homenagem ao menino de 8 anos - você já sabe - para que todos sempre se lembrem dele. Uma vez, por sinal, uma repórter o entrevistou e perguntou a ele se ele achava que deveria haver um monumento em homenagem a ele para que o povo sempre lembrasse. O menino de 8 anos - blá, blá, blá - deu uma demorada gargalhada do alto de seus mais de 2 metros e disse:
- Porque você acha que o povo se esqueceria de mim?

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

VI – O sonho da azeitona preta

Havia um mar muito azul, como costuma ser o mar no Peloponeso. Milhares de azeitonas rolavam pela areia. Eram de todas as cores: azuis, vermelhas, amarelas, brancas, pretas e das cores que resultam das misturas destas 5 cores. Iam em direção ao mar e voltavam embaladas pelas ondas salgadas. Horas e horas fazendo isto as tornavam deliciosas, tenras e saborosas. A azeitona preta fazia o mesmo, e podia ver de longe, a azeitona verde falando sem parar e rolando sempre nas ondas mais altas: parecia uma azeitona surfista! Tudo aquilo, a azeitona preta sabia, eram imagens que se formavam a partir de histórias que lhe foram contadas por outras azeitonas.
Aliás, desculpe-me, mas tenho que interromper o sonho da azeitona preta para explicar algo muito importante: vocês devem estar se perguntando como seria possível que uma azeitona soubesse que era preciso salgar-se para que seu sabor ficasse palatável - ou, de um jeito mais fácil, mais "gostoso". Depois que as azeitonas passam por estes processos, não há como voltar para contar para as outras o que aconteceu. Elas vão para as lojas, armazéns e restaurantes e são então compradas e saboreadas... Parece triste, você pensaria. Parece mau, você se revoltaria, mas, nas sábias palavras da ingênua azeitona verde, esta é a função social das azeitonas, e tudo o que elas fazem é para cumprir esta missão. Então, vocês me perguntam: e como as azeitonas poderiam saber o que acontece neste caminho entre a oliveira e as prateleiras de supermercados? Muito simples: após saboreadas, sobram os caroços das azeitonas (de muitas delas), e estes caroços, eventualmente são lançados ao chão e brotam, gerando novas oliveiras. Nos milhares de anos em que este ciclo já ocorreu, azeitonas brotam, viram árvores e geram novas azeitonas, que, por sua vez, têm destinos diferentes, seus caroços são plantados, brotam, crescem e geram mais e mais azeitonas, e isto, meus caros, nunca para de acontecer. A seiva das oliveiras transporta também a memória das azeitonas ancestrais, e assim, a azeitonas que brotam conhecem tudo sobre as azeitonas que já viveram antes...
Dito isto, voltemos ao sonho da azeitona preta, quando as felizes e coloridas azeitonas deleitavam-se na praia. Fartaram-se de brincar durante todo o dia, sem que nenhuma azeitona comentasse ou desfizesse da cor da outra. Às vezes parecia um arco-íris a se formar na superfície do mar. Até que chegou o entardecer, o céu vestiu-se de amarelo, depois de laranja, depois de vermelho com faixas roxas até que um manto azul bem escuro cobriu toda a imensidão e todas aquelas azeitonas passaram a ser sombras brilhantes num mar agora negro. Era lindo de se ver! As azeitonas estavam exaustas e felizes ao mesmo tempo. Com o frio que se aproximava, todas foram se acomodando em grandes podes de vidro, enormes potes com tampas de rosquear. Ali ficaram, todas juntas, aquecidas, num murmurinho manso de quem conta tudo o que fez durante o dia até que o cansaço vai vencendo a vontade de falar, à vontade de rolar, e as azeitonas permaneceram assim em silêncio... E com este sono calmo, despertou a azeitona preta a pensar no que lhe reservava o futuro.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

V – A segunda conversa

Como era muito cedo ainda, ninguém tinha vindo buscar as azeitonas caídas. As rajadas de vento vinham, balançavam as oliveiras e mais e mais azeitonas caiam. Os pássaros que gralham brincavam entre os galhos, voavam rasante entre os troncos e as estátuas e pousavam entre as azeitonas caídas. O sol, de longe, no horizonte, rasgava as folhagens com seus raios luminosos e fazia evaporar o orvalho com seu calor. Era como um banho matinal e as azeitonas deliciavam-se com aqueles novos momentos em suas breves existências.
E por mais breve que possa ser a vida de uma azeitona, nada a torna menos nobre do que qualquer outra vida, ainda mais porque, desde a mais remota antiguidade, as oliveiras acompanham a evolução da presença dos seres humanos na Terra.
Com toda a responsabilidade de quem tem muitos antepassados, a azeitona preta comentou:
- Veja o monumento da Eulália a juíza, o que você acha dela?
- Eulália? - Perguntou assustada a azeitona verde - A louca?
- Louca? Nem um pouco! - Respondeu a azeitona preta nervosa - De louca ela não tem nada, muito pelo contrário. Foi uma mulher de muita visão, isto sim! Como a princesa vesga da redação que ela escreveu!
A azeitona verde não entendeu:
- Mas ela não gostava de azeitona! Isso lá é normal? Qual seria nosso destino, nossa função social, nossa razão de existir, se as pessoas não gostassem de azeitona?
- Bem - Contemporizou a azeitona preta - Devagar aí... Se as pessoas não gostassem de azeitona, não sei o que seria de nós, mas pelo que sei, a Eulália e mais meia dúzia de pessoas não comem ou não comiam azeitonas... Qual o problema? O resto do mundo nos adora!
Função social? O que sabia aquela azeitona verde sobre função social, pensou a azeitona preta. Lembrava-se de histórias que ela não sabia se eram lendas ou escrituras sagradas, mas que seus pais e avós contavam ainda quando ela era uma bolinha verde bem pequena que quase não se via. Contavam que os antigos gregos untavam seus heróis e atletas em azeite e que colocavam ramos de oliveira como se fossem coroas nos mais bravos guerreiros. Contavam que um tal Homero escreveu um livro sobre as proezas de seu povo chamado Odisséia e nele chamava o azeite de oliva de "ouro líquido", e também que Rômulo e Remo, que se alimentaram do leite de uma loba viram pela primeira vez a luz do dia na cidade de Roma, a qual fundaram, do alto de uma oliveira. Mesmo assim, e mesmo tendo ouvido tantos outros relatos sobre a valorização das oliveiras pelos seres humanos, a azeitona Preta não tinha nenhum tipo de mágoa com relação à Eulália.
- Talvez ela só não gostasse de azeitonas pretas - Alfinetou a azeitona verde, com um ar de superioridade.
A azeitona preta fingiu ser o velho surdo e sem nariz e ficou quieta por muito tempo. Pior do que o preconceito contra a Eulália a juíza, era o preconceito contra as azeitonas pretas. Mas nesses momentos, a azeitona preta respirava fundo, com toda sua maturidade de quem já foi verde um dia e contava até 10... Ou mais.
Muitas azeitonas passeadeiras passaram rolando carregadas pelo vento, descendo a rua dando risada e saltitando. A azeitona preta olhou ainda quieta e sorriu contemplando a leveza das azeitonas passeadeiras. O sol começava a esquentar o chão. Aquelas memórias todas e o comentário infeliz da azeitona verde a deixaram um pouco cansada. Fechou os olhos, cochilou e sonhou...

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

IV - A menina que não comia azeitonas


Enquanto todos na cidade adoravam comer azeitonas e todos os produtos derivados da azeitona, Eulália, a juíza, recusava-se a comer qualquer coisa que tivesse azeitona ou azeite. Nas festividades, quando todos compunham receitas para valorizar a fruta, Eulália punha-se de lado, dava de ombros e ficava a contar os pássaros nos galhos.
Quando pequena, algumas crianças na escola e nas brincadeiras de rua ficavam fazendo piada e chegavam a isolar um pouco a Eulália. Muitas mães e pais aconselhavam os filhos a manterem uma certa distância da estranha criança.
Tamanha era a estranheza que, o prefeito, desacorçoado, convocou a câmara e conseguiu aprovar um tratamento no melhor psicólogo de toda aquela região. E não foi pouco dinheiro, nem poucas horas de muita conversa, estudos, testes em laboratório, artigos em periódicos, discussões com professores e colegas em hospitais e clínicas renomadas. Eulália não colaborava: nada havia de errado em seu organismo e sua cabeça; fora esta anomalia, parecia perfeita. Ela tinha até as melhores notas da escola em história, matemática e educação física, coisas tão distintas quanto as cores das azeitonas. Até novena foi feita, até o padre fez missa e, dizem, até os homens das seitas da escuridão foram consultados. Definitivamente não era mau olhado, nem macumba, nem coisa do capeta do coisa ruim. Enquanto isso a pobre mãe de Eulália desesperava-se:
- Eulália, minha filha! Prove uma azeitona, por favor!
- Já provei mãe. Não se lembra? Devia ter uns três anos ainda... Respondia Eulália contrariada.
- Então tenta mais uma vez... Faz isso para a mamãe - insistia a mãe desiludida.
- É amarga mãe, é azeda e me faz cócegas na garganta - dizia Eulália com firmeza.
- O povo tá falando filha... Não é certo filha - apelava a mãe.
E a discussão continuava por vários minutos, horas e dias, e mãe e filha não chegavam a um acordo.
Eu não quero dar palpite neste assunto: sempre gostei muito de azeitona, e para mim isto é natural, mas conheci, fora daquela cidade, muitas pessoas que não gostavam e não gostam, e têm o hábito de tirar a azeitona dos pratos mais deliciosos e muitas vezes jogar fora. Isso me dá um pouco de pena, mas até aí, achar que não é normal... Isso não.
Na redação de final de ano, naquele ano, Eulália escreveu a mais bela fábula já vista na escola municipal da praça central. Na fábula, uma princesa vesga era perseguida pelo povo incentivado por um vilão que dominava a mente com um elixir aromático. Todos sentiam-se compelidos a achar que a princesa não enxergava nada e jamais entenderia os anseios de seu povo. Liderados pelo vilão, os homens mais fortes do reino entraram no castelo e dominaram a guarda pessoal do rei - e os guarda também concordavam com o vilão - e correram atrás da princesa. Felizmente, a princesa vesga conseguiu escapar, tropeçando aqui e alí, caindo algumas vezes e, no final, refugiando-se na casa do velho surdo sem nariz no meio da floresta. O velho surdo sem nariz vivia sozinho desde há muito tempo, e nem sabia que a princesa vesga era a princesa. Para ele, pouco importava. A princesa gritava que queria se matar e que ia se jogar do penhasco, mas o velho surdo que nada ouvia ou cheirava oferecia alguns biscoitos murchos e um cobertor em frente à lareira. Como o velho não era bobo, ele não ouvia mas percebia que a princesa vesga queria se matar, e tudo fazia para não deixá-la só.
Conforme o coração da princesa foi se acalmando, ela foi conseguindo ver o que se passava: para o velho surdo sem nariz pouco importava se ela era vesga, assim como para ela, o velho era o herói que a tinha refugiado. Com o tempo, a princesa vesga começou a tocar harpa para os ouvidos surdos do velho e a cozinhar bolos condimentados cujo cheiro o velho não sentia. Mas ele adorava quando ela fazia os bolos e tocava as melodias.
Anos se passaram e o reino, dominado pelo vilão, foi se transformando em uma triste paisagem com doenças e sofrimento. O povo esfomeado veio destruindo a floresta, roubando as plantações e matando os animais. Até que um dia chegou um grupo todo maltrapilho na casa do velho surdo sem nariz. Uma das mulheres do grupo identificou a princesa vesga e contou tudo o que estava acontecendo. O grupo que ali chegara havia percebido que a princesa vesga era na verdade quem tinha a melhor visão.
Na verdade, muitos tentaram chegar até o vilão, mas o elixir era muito forte e a mente, ao contrário, ficava muito fraca.
Não é preciso muito para perceber o que aconteceu: a princesa conseguiu convencer o velho surdo e sem nariz a ir junto com ela até o castelo. Fingiram-se de servos até chegarem no portão principal, e desse ponto em diante, o velho surdo e sem nariz seguiu sozinho para encontrar-se com o homem vil. O tolo do vilão, temendo tratar-se de um golpe, espalhou seu elixir no nariz do velho, mas, como ele não tinha nariz, pouco importava. O vilão mandou então tocar os tambores e os sinos para enlouquecer o velho, e este, nem ligou, posto que era surdo. O velho surdo e sem nariz ofereceu então um bolo feito pela princesa. Era um bolo temperado, delicioso, cheiroso e vistoso. Convencido de que o velho surdo e sem nariz era mais um de seus vassalos, o vilão aceitou e comeu todo o bolo. E bolo não faz mal para a saúde, mas, na quantidade que ele comeu, foi suficiente para que ele dormisse profundamente.
Assim, levaram o vilão dorminhoco para o pântano do esquecimento e lá ele passou o resto de seus tempos. O reino foi reconstruído e a princesa vesga foi aclamada rainha vesga e a todos deixou felizes, pois sua visão não dependia de sua vesguice.
Esta foi mais ou menos a redação de Eulália a juíza. Mais ou menos, porque ela realmente caprichou muito mais, rebuscou no português, achou sinônimos e adjetivos apropriados. E quando, no final do ano, o prefeito foi entregar o prêmio de melhor redação, espantou-se ao ver quem era a vencedora. Relutou até, por alguns instantes, mas, emocionado, a premiou, e acrescentou:
- Sua virtude, Eulália, é ser diferente, e ainda assim, ser tão humana.
Eulália ficou famosa, virou juíza, e ajudou muitos a verem os bons caminhos, e nunca mais ninguém reclamou ou achou estranho que ela não comesse azeitonas. No ano em que Eulália morreu, foi inaugurada, ao lado das estátuas das crianças, um monumento em sua homenagem, com a inscrição "Somos diferentes mas vivemos todos sob as oliveiras".

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

III - O encontro

Tudo isso que foi dito até agora, não deixa de ser importante. Afinal, quem decide se uma coisa é importante ou não, é quem vive a coisa. Mas se você fosse uma azeitona, talvez as estátuas no centro da praça, as aves que gralham bicando seus cabinhos, os donos da fábrica e o prefeito, tivessem uma importância diferente.
O mundo das azeitonas é, com certeza, o mesmo que o nosso, o dos pássaros, das serpentes e das minhocas, só que a forma como as azeitonas o veem, é bem diferente.
E também nós, não somos capazes de perceber muito bem, como se forma uma família de azeitonas, com pai, mãe, irmãos e primos. O importante neste caso, é que as famílias existem e são muito parecidas com as nossas famílias. E isto é verdade, porque meu avô contou ao meu pai e ele me contou, e certamente o pai do meu avô contou a ele e assim por diante, até que o "big bang" aconteceu.
Naquele dia frio então, bem do começo da história, em que milhares de azeitonas haviam sido libertadas de seus cabinhos, muitas delas pelas bicadas dos pássaros que gralham, muitas outras simplesmente porque chegara a hora de descer, se encontraram duas belas e luzentes azeitonas. Uma azeitona verde, e outra azeitona preta (ou roxa bem escura se você quiser). Como não havia um nome para elas registrado no cartório, elas eram chamadas respectivamente de azeitona verde e azeitona preta.
Meio zonza pela queda, a azeitona verde olha profundamente para a azeitona preta, procurando puxar papo ou mesmo ver se a azeitona preta era amigável. E para seu espanto, a azeitona preta é que resolve falar com ela primeiro:
- Que queda, hein?
- Nem me fale... sabia que isto iria acontecer cedo ou tarde, mas pelo amor de Deus, quando vi aquele pássaro que gralha a bicar sem parar o cabinho que sempre me prendeu à oliveira, pensei cá comigo: ele vai me acertar, ele vai me acertar. Era um bico comprido e que ponta tinha aquele bico. Rapaz! Sempre quis me libertar da oliveira, para ter, tipo assim, uma vida independente mesmo... Estou amadurecendo e coisa e tal, mas rapaz! Cheguei a ficar com muito medo mesmo! Respondeu a azeitona verde.
Seguiu-se um longo silêncio, daqueles em que as idéias ficam reverberando na cabeça, as imagens se formam e se esvaem, até que finalmente a azeitona preta se pronunciou:
- Você fala, hein?
Claro que depois disso, a azeitona verde sentiu-se meio mal, como se tivesse sofrido uma segunda queda. Mas não dá para querer comparar uma azeitona preta com uma azeitona verde. Elas são bem diferentes! A azeitona preta é madura, é vivida, sabe mais coisas sobre o nosso mundo. Por ser mais madura, ela acaba sendo mais mole na consistência, não que ela seja preguiçosa, isso não, mas por ser mais macia, a queda acaba sendo melhor amortecida, então ela não tem tanto temor assim ao cair. A azeitona verde, ao contrário, é meio ingênua e só se acha madura, mas na verdade ela não quer ficar madura nunca, senão ela acaba ficando preta.
Espere um pouco! Vai me dizer que você achava que existia uma oliveira que desse frutos verdes e outra que desse frutos pretos? Não, nada disso: há muitos tipos de oliveiras, com frutos maiores, menores, mais amargos, mais azedos, mais carnudos e mais caroçudos, mas quanto à cor, não se iluda, todos os frutos nascem verdinhos e crescem verdinhos e só ficam pretos - ta bom, pretinhos - quando amadurecem. Oh! Mesmo? Sim!
Enquanto expliquei isto, as azeitonas retomaram o diálogo, com uma justificativa da azeitona verde:
- Se você fosse verde e caísse quicando pelo chão, entenderia perfeitamente minha ansiedade e nervosismo. Mas não quero te incomodar não...
Um novo silêncio seguiu-se, com suspiros de ambos os lados até que a azeitona preta disse:
- Incômodo algum. Gosto muito de conversar com azeitonas verdes.
Desta vez seguiu-se um silêncio, mas foi um ótimo silêncio, daqueles que escondem um sorriso meio de lado, de reconciliação, de alívio mesmo.
Houve uma movimentação de azeitonas pelo chão, uma ventarada danada, era azeitona rolando pela frente, pelo lado, uma barulheira mesmo. Durante a noite, os moradores da cidade estenderam grandes lonas pelo chão para que as azeitonas caíssem mais confortavelmente. Este costume já existia desde muito antes da lei de respeito às oliveiras, porque todos - ou quase todos - adoravam comer os frutos que caiam.
A azeitona verde parou de rolar e, mais uma vez zonza, olhou para os lados procurando sua nova amiga. Surpreendeu-se quando percebeu que ela continuava ali bem do lado dela.
- Que bom que você continua por aí! Confortou-se a azeitona verde.
- Ainda estamos aqui - confirmou a azeitona preta - não sabemos por quanto tempo, mas estamos todas aqui...

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

II - A homenagem

Um conhecido ornitólogo, daqueles que estudam os pássaros e por isso mesmo têm este nome, pesquisou durante 3 anos e meio os hábitos das gralhas da praça central, e descobriu, após análises estatísticas refinadas, que as belas aves não comiam as azeitonas - e não comem ainda - porque elas não gostam do sabor e principalmente porque acham o caroço muito grande.
As aves que gralham preferem, ao invés disso, bicar o cabinho que prende a azeitona ao galho. Elas adoram o sabor da seiva desta pequena haste. Com isto, os frutos caem e, muitas vezes ficam machucados ao baterem no solo. Só às vezes, e isto quando estão muito maduros, porque são tão pequenos e leves que quase sempre caem intactos no chão.
O ornitólogo, a comunidade científica, o prefeito e muitos moradores se perguntaram então, porque os donos da fábrica quiseram acabar com as gralhas. Afinal, elas não comiam as deliciosas azeitonas e ainda gostavam de comer os insetos que botavam seus ovos nas oliveiras e cujas larvas se desenvolviam alimentando-se das suculentas azeitonas.
Nunca ninguém teve coragem de ir até a colina dos desvairados perguntar aos malvados homens porque eles fizeram tal barbaridade. O mistério permaneceu na cidade assim como o medo de que alguém mais tentasse maltratar os pássaros e as oliveiras.
Logo em seguida os homens que legislam fizeram uma lei e toda a população aplaudiu: "As oliveiras e as aves que gralham devem ser respeitadas, cuidadas e preservadas e todos devem amá-las porque a todos elas trazem vida. Ao contrário, a destruição das oliveiras e das aves que gralham trazem a morte." Este era o parágrafo 1, e logo em seguida vinha um complemento: "Os outros tipos de árvores e de animais também devem ser respeitados, cuidados e preservados, a menos que se diga o contrário, mas para isto muitos cientistas deverão ser consultados antes."
O prefeito leu a nova lei e inaugurou uma placa de metal bem polido onde as palavras da lei podiam ser lidas. A placa foi colocada bem no meio da praça central, ao lado de uma escultura do menino de camisa vermelha e da menina de vestido branco que foi inaugurada junto. Ele plantou também uma muda de oliveira no canteiro onde antes viveu a oliveira de 1300 anos. Foi comovente ver todos reunidos. Cada um com seus próprios pensamentos e com suas próprias lembranças. Na noite que se seguiu, choveu docemente e as folhas das oliveiras foram lavadas para que acordassem ainda mais brilhantes. A estátua das crianças foi, desde então, muito admirada por todos que passavam pela praça, e como ela foi feita, assim como a placa, de um metal brilhante, as mulheres acharam por bem, confeccionar roupas - um vestido branco e uma camisa vermelha - e colocarem nas estátuas. Fizeram inclusive, várias mudas de roupas e todos os dias pela manhã, as crianças esculpidas acordam com roupas limpas, passadas e cheirosas. Nunca se soube de um dia em que um pássaro que gralha tivesse feito titica nas estátuas, mas é comum de se ver as aves saltitando e ciscando ao redor das estátuas.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

I - A praça central


Então começa aqui essa história. E é mesmo uma história e não estória, pois os fatos narrados aconteceram mesmo, e muitas testemunhas viram... E sentiram.
Para dizer a verdade, era um tempo de muito frio, daqueles frios de inverno, que vêm logo depois de um outono cheio de frutas que vem logo após um verão de muito sol e muita praia. Um frio intenso com todos esperando que a primavera chegue com suas flores de mil pétalas e aromas. E do outono que findara, lindas azeitonas caíram das oliveiras da praça central.
Sempre que se passa pela praça central, duas coisas chamam muito a atenção: uma delas são os pássaros que gralham a cada meia hora acompanhando o badalar dos sinos da matriz e a outra, as azeitonas que recobrem o chão nesta época do ano.
No último senso botânico e zoológico, o próprio prefeito contou 12 espécies diferentes de pássaros que gralham e 8 tipos de oliveiras só na praça central. Em dias mais quentes, diz-se na cidade que mais de 40000 pássaros que gralham vêm habitar a praça, e que, quando voam em revoadas, chega-se a pensar que a noite veio mais cedo ou que um grande zeppelin veio visitar os moradores. As gralhas costumam ter as penas bem pretas e brilhantes, mas muitos conseguem ver gralhas azuis escuras, verde-oliva, vermelhas e até brancas. Isto não sei se é verdade, mas foi o que me garantiu um velho senhor de 108 anos que sempre viveu na casa de número três, bem ao lado da praça.
Ele contou também, que quando tinha 7 anos, viu quando os homens da fábrica de azeite quiseram acabar com elas, ateando fogo a uma das oliveiras. O velho senhor, que tinha 7 anos, e todas as outras crianças da praça correram com baldes, panelas, copos cheios de água e fizeram de tudo para apagar o fogo. A tragédia foi muito grande: uma menina de vestido branco e um menino de camisa vermelha lutaram contra o fogo na oliveira mais antiga, com 1300 anos, que ardia no centro da praça. Foram vistos pequenos pássaros que gralham caindo dos ninhos intoxicados pela fumaça. A menina e o menino sopravam ar para que os pequenos pássaros pudessem se recuperar e muitos deles de fato conseguiram voar para longe com estes "sopros de vida".
Finalmente o fogo foi controlado. Contou-se a morte de 8 árvores que na cidade já estavam antes que as ruas tivessem chegado, 183 pássaros que gralham e de duas crianças: uma menina de vestido branco e um menino de camisa vermelha.
Desde então, diz-se que as gralhas brancas são as que receberam o sopro de vida da menina de vestido branco e as vermelhas receberam o sopro de vida do menino de camisa vermelha.
Os habitantes tentam todos os dias contar os pássaros vermelhos e brancos, mas eles voam rápido e alto, sempre com medo que alguém tente botar fogo nas árvores.
Os donos da fábrica fugiram, e soube-se depois que de tanto arrependimento, nunca mais conseguiram falar com ninguém e foram morar isolados no alto da colina dos desvairados até o fim de suas vidas.
A fábrica continua, mas os novos donos plantaram muitas outras oliveiras e não se importam se pássaros vêm comer seus frutos.