quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

VI – O sonho da azeitona preta

Havia um mar muito azul, como costuma ser o mar no Peloponeso. Milhares de azeitonas rolavam pela areia. Eram de todas as cores: azuis, vermelhas, amarelas, brancas, pretas e das cores que resultam das misturas destas 5 cores. Iam em direção ao mar e voltavam embaladas pelas ondas salgadas. Horas e horas fazendo isto as tornavam deliciosas, tenras e saborosas. A azeitona preta fazia o mesmo, e podia ver de longe, a azeitona verde falando sem parar e rolando sempre nas ondas mais altas: parecia uma azeitona surfista! Tudo aquilo, a azeitona preta sabia, eram imagens que se formavam a partir de histórias que lhe foram contadas por outras azeitonas.
Aliás, desculpe-me, mas tenho que interromper o sonho da azeitona preta para explicar algo muito importante: vocês devem estar se perguntando como seria possível que uma azeitona soubesse que era preciso salgar-se para que seu sabor ficasse palatável - ou, de um jeito mais fácil, mais "gostoso". Depois que as azeitonas passam por estes processos, não há como voltar para contar para as outras o que aconteceu. Elas vão para as lojas, armazéns e restaurantes e são então compradas e saboreadas... Parece triste, você pensaria. Parece mau, você se revoltaria, mas, nas sábias palavras da ingênua azeitona verde, esta é a função social das azeitonas, e tudo o que elas fazem é para cumprir esta missão. Então, vocês me perguntam: e como as azeitonas poderiam saber o que acontece neste caminho entre a oliveira e as prateleiras de supermercados? Muito simples: após saboreadas, sobram os caroços das azeitonas (de muitas delas), e estes caroços, eventualmente são lançados ao chão e brotam, gerando novas oliveiras. Nos milhares de anos em que este ciclo já ocorreu, azeitonas brotam, viram árvores e geram novas azeitonas, que, por sua vez, têm destinos diferentes, seus caroços são plantados, brotam, crescem e geram mais e mais azeitonas, e isto, meus caros, nunca para de acontecer. A seiva das oliveiras transporta também a memória das azeitonas ancestrais, e assim, a azeitonas que brotam conhecem tudo sobre as azeitonas que já viveram antes...
Dito isto, voltemos ao sonho da azeitona preta, quando as felizes e coloridas azeitonas deleitavam-se na praia. Fartaram-se de brincar durante todo o dia, sem que nenhuma azeitona comentasse ou desfizesse da cor da outra. Às vezes parecia um arco-íris a se formar na superfície do mar. Até que chegou o entardecer, o céu vestiu-se de amarelo, depois de laranja, depois de vermelho com faixas roxas até que um manto azul bem escuro cobriu toda a imensidão e todas aquelas azeitonas passaram a ser sombras brilhantes num mar agora negro. Era lindo de se ver! As azeitonas estavam exaustas e felizes ao mesmo tempo. Com o frio que se aproximava, todas foram se acomodando em grandes podes de vidro, enormes potes com tampas de rosquear. Ali ficaram, todas juntas, aquecidas, num murmurinho manso de quem conta tudo o que fez durante o dia até que o cansaço vai vencendo a vontade de falar, à vontade de rolar, e as azeitonas permaneceram assim em silêncio... E com este sono calmo, despertou a azeitona preta a pensar no que lhe reservava o futuro.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

V – A segunda conversa

Como era muito cedo ainda, ninguém tinha vindo buscar as azeitonas caídas. As rajadas de vento vinham, balançavam as oliveiras e mais e mais azeitonas caiam. Os pássaros que gralham brincavam entre os galhos, voavam rasante entre os troncos e as estátuas e pousavam entre as azeitonas caídas. O sol, de longe, no horizonte, rasgava as folhagens com seus raios luminosos e fazia evaporar o orvalho com seu calor. Era como um banho matinal e as azeitonas deliciavam-se com aqueles novos momentos em suas breves existências.
E por mais breve que possa ser a vida de uma azeitona, nada a torna menos nobre do que qualquer outra vida, ainda mais porque, desde a mais remota antiguidade, as oliveiras acompanham a evolução da presença dos seres humanos na Terra.
Com toda a responsabilidade de quem tem muitos antepassados, a azeitona preta comentou:
- Veja o monumento da Eulália a juíza, o que você acha dela?
- Eulália? - Perguntou assustada a azeitona verde - A louca?
- Louca? Nem um pouco! - Respondeu a azeitona preta nervosa - De louca ela não tem nada, muito pelo contrário. Foi uma mulher de muita visão, isto sim! Como a princesa vesga da redação que ela escreveu!
A azeitona verde não entendeu:
- Mas ela não gostava de azeitona! Isso lá é normal? Qual seria nosso destino, nossa função social, nossa razão de existir, se as pessoas não gostassem de azeitona?
- Bem - Contemporizou a azeitona preta - Devagar aí... Se as pessoas não gostassem de azeitona, não sei o que seria de nós, mas pelo que sei, a Eulália e mais meia dúzia de pessoas não comem ou não comiam azeitonas... Qual o problema? O resto do mundo nos adora!
Função social? O que sabia aquela azeitona verde sobre função social, pensou a azeitona preta. Lembrava-se de histórias que ela não sabia se eram lendas ou escrituras sagradas, mas que seus pais e avós contavam ainda quando ela era uma bolinha verde bem pequena que quase não se via. Contavam que os antigos gregos untavam seus heróis e atletas em azeite e que colocavam ramos de oliveira como se fossem coroas nos mais bravos guerreiros. Contavam que um tal Homero escreveu um livro sobre as proezas de seu povo chamado Odisséia e nele chamava o azeite de oliva de "ouro líquido", e também que Rômulo e Remo, que se alimentaram do leite de uma loba viram pela primeira vez a luz do dia na cidade de Roma, a qual fundaram, do alto de uma oliveira. Mesmo assim, e mesmo tendo ouvido tantos outros relatos sobre a valorização das oliveiras pelos seres humanos, a azeitona Preta não tinha nenhum tipo de mágoa com relação à Eulália.
- Talvez ela só não gostasse de azeitonas pretas - Alfinetou a azeitona verde, com um ar de superioridade.
A azeitona preta fingiu ser o velho surdo e sem nariz e ficou quieta por muito tempo. Pior do que o preconceito contra a Eulália a juíza, era o preconceito contra as azeitonas pretas. Mas nesses momentos, a azeitona preta respirava fundo, com toda sua maturidade de quem já foi verde um dia e contava até 10... Ou mais.
Muitas azeitonas passeadeiras passaram rolando carregadas pelo vento, descendo a rua dando risada e saltitando. A azeitona preta olhou ainda quieta e sorriu contemplando a leveza das azeitonas passeadeiras. O sol começava a esquentar o chão. Aquelas memórias todas e o comentário infeliz da azeitona verde a deixaram um pouco cansada. Fechou os olhos, cochilou e sonhou...

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

IV - A menina que não comia azeitonas


Enquanto todos na cidade adoravam comer azeitonas e todos os produtos derivados da azeitona, Eulália, a juíza, recusava-se a comer qualquer coisa que tivesse azeitona ou azeite. Nas festividades, quando todos compunham receitas para valorizar a fruta, Eulália punha-se de lado, dava de ombros e ficava a contar os pássaros nos galhos.
Quando pequena, algumas crianças na escola e nas brincadeiras de rua ficavam fazendo piada e chegavam a isolar um pouco a Eulália. Muitas mães e pais aconselhavam os filhos a manterem uma certa distância da estranha criança.
Tamanha era a estranheza que, o prefeito, desacorçoado, convocou a câmara e conseguiu aprovar um tratamento no melhor psicólogo de toda aquela região. E não foi pouco dinheiro, nem poucas horas de muita conversa, estudos, testes em laboratório, artigos em periódicos, discussões com professores e colegas em hospitais e clínicas renomadas. Eulália não colaborava: nada havia de errado em seu organismo e sua cabeça; fora esta anomalia, parecia perfeita. Ela tinha até as melhores notas da escola em história, matemática e educação física, coisas tão distintas quanto as cores das azeitonas. Até novena foi feita, até o padre fez missa e, dizem, até os homens das seitas da escuridão foram consultados. Definitivamente não era mau olhado, nem macumba, nem coisa do capeta do coisa ruim. Enquanto isso a pobre mãe de Eulália desesperava-se:
- Eulália, minha filha! Prove uma azeitona, por favor!
- Já provei mãe. Não se lembra? Devia ter uns três anos ainda... Respondia Eulália contrariada.
- Então tenta mais uma vez... Faz isso para a mamãe - insistia a mãe desiludida.
- É amarga mãe, é azeda e me faz cócegas na garganta - dizia Eulália com firmeza.
- O povo tá falando filha... Não é certo filha - apelava a mãe.
E a discussão continuava por vários minutos, horas e dias, e mãe e filha não chegavam a um acordo.
Eu não quero dar palpite neste assunto: sempre gostei muito de azeitona, e para mim isto é natural, mas conheci, fora daquela cidade, muitas pessoas que não gostavam e não gostam, e têm o hábito de tirar a azeitona dos pratos mais deliciosos e muitas vezes jogar fora. Isso me dá um pouco de pena, mas até aí, achar que não é normal... Isso não.
Na redação de final de ano, naquele ano, Eulália escreveu a mais bela fábula já vista na escola municipal da praça central. Na fábula, uma princesa vesga era perseguida pelo povo incentivado por um vilão que dominava a mente com um elixir aromático. Todos sentiam-se compelidos a achar que a princesa não enxergava nada e jamais entenderia os anseios de seu povo. Liderados pelo vilão, os homens mais fortes do reino entraram no castelo e dominaram a guarda pessoal do rei - e os guarda também concordavam com o vilão - e correram atrás da princesa. Felizmente, a princesa vesga conseguiu escapar, tropeçando aqui e alí, caindo algumas vezes e, no final, refugiando-se na casa do velho surdo sem nariz no meio da floresta. O velho surdo sem nariz vivia sozinho desde há muito tempo, e nem sabia que a princesa vesga era a princesa. Para ele, pouco importava. A princesa gritava que queria se matar e que ia se jogar do penhasco, mas o velho surdo que nada ouvia ou cheirava oferecia alguns biscoitos murchos e um cobertor em frente à lareira. Como o velho não era bobo, ele não ouvia mas percebia que a princesa vesga queria se matar, e tudo fazia para não deixá-la só.
Conforme o coração da princesa foi se acalmando, ela foi conseguindo ver o que se passava: para o velho surdo sem nariz pouco importava se ela era vesga, assim como para ela, o velho era o herói que a tinha refugiado. Com o tempo, a princesa vesga começou a tocar harpa para os ouvidos surdos do velho e a cozinhar bolos condimentados cujo cheiro o velho não sentia. Mas ele adorava quando ela fazia os bolos e tocava as melodias.
Anos se passaram e o reino, dominado pelo vilão, foi se transformando em uma triste paisagem com doenças e sofrimento. O povo esfomeado veio destruindo a floresta, roubando as plantações e matando os animais. Até que um dia chegou um grupo todo maltrapilho na casa do velho surdo sem nariz. Uma das mulheres do grupo identificou a princesa vesga e contou tudo o que estava acontecendo. O grupo que ali chegara havia percebido que a princesa vesga era na verdade quem tinha a melhor visão.
Na verdade, muitos tentaram chegar até o vilão, mas o elixir era muito forte e a mente, ao contrário, ficava muito fraca.
Não é preciso muito para perceber o que aconteceu: a princesa conseguiu convencer o velho surdo e sem nariz a ir junto com ela até o castelo. Fingiram-se de servos até chegarem no portão principal, e desse ponto em diante, o velho surdo e sem nariz seguiu sozinho para encontrar-se com o homem vil. O tolo do vilão, temendo tratar-se de um golpe, espalhou seu elixir no nariz do velho, mas, como ele não tinha nariz, pouco importava. O vilão mandou então tocar os tambores e os sinos para enlouquecer o velho, e este, nem ligou, posto que era surdo. O velho surdo e sem nariz ofereceu então um bolo feito pela princesa. Era um bolo temperado, delicioso, cheiroso e vistoso. Convencido de que o velho surdo e sem nariz era mais um de seus vassalos, o vilão aceitou e comeu todo o bolo. E bolo não faz mal para a saúde, mas, na quantidade que ele comeu, foi suficiente para que ele dormisse profundamente.
Assim, levaram o vilão dorminhoco para o pântano do esquecimento e lá ele passou o resto de seus tempos. O reino foi reconstruído e a princesa vesga foi aclamada rainha vesga e a todos deixou felizes, pois sua visão não dependia de sua vesguice.
Esta foi mais ou menos a redação de Eulália a juíza. Mais ou menos, porque ela realmente caprichou muito mais, rebuscou no português, achou sinônimos e adjetivos apropriados. E quando, no final do ano, o prefeito foi entregar o prêmio de melhor redação, espantou-se ao ver quem era a vencedora. Relutou até, por alguns instantes, mas, emocionado, a premiou, e acrescentou:
- Sua virtude, Eulália, é ser diferente, e ainda assim, ser tão humana.
Eulália ficou famosa, virou juíza, e ajudou muitos a verem os bons caminhos, e nunca mais ninguém reclamou ou achou estranho que ela não comesse azeitonas. No ano em que Eulália morreu, foi inaugurada, ao lado das estátuas das crianças, um monumento em sua homenagem, com a inscrição "Somos diferentes mas vivemos todos sob as oliveiras".

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

III - O encontro

Tudo isso que foi dito até agora, não deixa de ser importante. Afinal, quem decide se uma coisa é importante ou não, é quem vive a coisa. Mas se você fosse uma azeitona, talvez as estátuas no centro da praça, as aves que gralham bicando seus cabinhos, os donos da fábrica e o prefeito, tivessem uma importância diferente.
O mundo das azeitonas é, com certeza, o mesmo que o nosso, o dos pássaros, das serpentes e das minhocas, só que a forma como as azeitonas o veem, é bem diferente.
E também nós, não somos capazes de perceber muito bem, como se forma uma família de azeitonas, com pai, mãe, irmãos e primos. O importante neste caso, é que as famílias existem e são muito parecidas com as nossas famílias. E isto é verdade, porque meu avô contou ao meu pai e ele me contou, e certamente o pai do meu avô contou a ele e assim por diante, até que o "big bang" aconteceu.
Naquele dia frio então, bem do começo da história, em que milhares de azeitonas haviam sido libertadas de seus cabinhos, muitas delas pelas bicadas dos pássaros que gralham, muitas outras simplesmente porque chegara a hora de descer, se encontraram duas belas e luzentes azeitonas. Uma azeitona verde, e outra azeitona preta (ou roxa bem escura se você quiser). Como não havia um nome para elas registrado no cartório, elas eram chamadas respectivamente de azeitona verde e azeitona preta.
Meio zonza pela queda, a azeitona verde olha profundamente para a azeitona preta, procurando puxar papo ou mesmo ver se a azeitona preta era amigável. E para seu espanto, a azeitona preta é que resolve falar com ela primeiro:
- Que queda, hein?
- Nem me fale... sabia que isto iria acontecer cedo ou tarde, mas pelo amor de Deus, quando vi aquele pássaro que gralha a bicar sem parar o cabinho que sempre me prendeu à oliveira, pensei cá comigo: ele vai me acertar, ele vai me acertar. Era um bico comprido e que ponta tinha aquele bico. Rapaz! Sempre quis me libertar da oliveira, para ter, tipo assim, uma vida independente mesmo... Estou amadurecendo e coisa e tal, mas rapaz! Cheguei a ficar com muito medo mesmo! Respondeu a azeitona verde.
Seguiu-se um longo silêncio, daqueles em que as idéias ficam reverberando na cabeça, as imagens se formam e se esvaem, até que finalmente a azeitona preta se pronunciou:
- Você fala, hein?
Claro que depois disso, a azeitona verde sentiu-se meio mal, como se tivesse sofrido uma segunda queda. Mas não dá para querer comparar uma azeitona preta com uma azeitona verde. Elas são bem diferentes! A azeitona preta é madura, é vivida, sabe mais coisas sobre o nosso mundo. Por ser mais madura, ela acaba sendo mais mole na consistência, não que ela seja preguiçosa, isso não, mas por ser mais macia, a queda acaba sendo melhor amortecida, então ela não tem tanto temor assim ao cair. A azeitona verde, ao contrário, é meio ingênua e só se acha madura, mas na verdade ela não quer ficar madura nunca, senão ela acaba ficando preta.
Espere um pouco! Vai me dizer que você achava que existia uma oliveira que desse frutos verdes e outra que desse frutos pretos? Não, nada disso: há muitos tipos de oliveiras, com frutos maiores, menores, mais amargos, mais azedos, mais carnudos e mais caroçudos, mas quanto à cor, não se iluda, todos os frutos nascem verdinhos e crescem verdinhos e só ficam pretos - ta bom, pretinhos - quando amadurecem. Oh! Mesmo? Sim!
Enquanto expliquei isto, as azeitonas retomaram o diálogo, com uma justificativa da azeitona verde:
- Se você fosse verde e caísse quicando pelo chão, entenderia perfeitamente minha ansiedade e nervosismo. Mas não quero te incomodar não...
Um novo silêncio seguiu-se, com suspiros de ambos os lados até que a azeitona preta disse:
- Incômodo algum. Gosto muito de conversar com azeitonas verdes.
Desta vez seguiu-se um silêncio, mas foi um ótimo silêncio, daqueles que escondem um sorriso meio de lado, de reconciliação, de alívio mesmo.
Houve uma movimentação de azeitonas pelo chão, uma ventarada danada, era azeitona rolando pela frente, pelo lado, uma barulheira mesmo. Durante a noite, os moradores da cidade estenderam grandes lonas pelo chão para que as azeitonas caíssem mais confortavelmente. Este costume já existia desde muito antes da lei de respeito às oliveiras, porque todos - ou quase todos - adoravam comer os frutos que caiam.
A azeitona verde parou de rolar e, mais uma vez zonza, olhou para os lados procurando sua nova amiga. Surpreendeu-se quando percebeu que ela continuava ali bem do lado dela.
- Que bom que você continua por aí! Confortou-se a azeitona verde.
- Ainda estamos aqui - confirmou a azeitona preta - não sabemos por quanto tempo, mas estamos todas aqui...

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

II - A homenagem

Um conhecido ornitólogo, daqueles que estudam os pássaros e por isso mesmo têm este nome, pesquisou durante 3 anos e meio os hábitos das gralhas da praça central, e descobriu, após análises estatísticas refinadas, que as belas aves não comiam as azeitonas - e não comem ainda - porque elas não gostam do sabor e principalmente porque acham o caroço muito grande.
As aves que gralham preferem, ao invés disso, bicar o cabinho que prende a azeitona ao galho. Elas adoram o sabor da seiva desta pequena haste. Com isto, os frutos caem e, muitas vezes ficam machucados ao baterem no solo. Só às vezes, e isto quando estão muito maduros, porque são tão pequenos e leves que quase sempre caem intactos no chão.
O ornitólogo, a comunidade científica, o prefeito e muitos moradores se perguntaram então, porque os donos da fábrica quiseram acabar com as gralhas. Afinal, elas não comiam as deliciosas azeitonas e ainda gostavam de comer os insetos que botavam seus ovos nas oliveiras e cujas larvas se desenvolviam alimentando-se das suculentas azeitonas.
Nunca ninguém teve coragem de ir até a colina dos desvairados perguntar aos malvados homens porque eles fizeram tal barbaridade. O mistério permaneceu na cidade assim como o medo de que alguém mais tentasse maltratar os pássaros e as oliveiras.
Logo em seguida os homens que legislam fizeram uma lei e toda a população aplaudiu: "As oliveiras e as aves que gralham devem ser respeitadas, cuidadas e preservadas e todos devem amá-las porque a todos elas trazem vida. Ao contrário, a destruição das oliveiras e das aves que gralham trazem a morte." Este era o parágrafo 1, e logo em seguida vinha um complemento: "Os outros tipos de árvores e de animais também devem ser respeitados, cuidados e preservados, a menos que se diga o contrário, mas para isto muitos cientistas deverão ser consultados antes."
O prefeito leu a nova lei e inaugurou uma placa de metal bem polido onde as palavras da lei podiam ser lidas. A placa foi colocada bem no meio da praça central, ao lado de uma escultura do menino de camisa vermelha e da menina de vestido branco que foi inaugurada junto. Ele plantou também uma muda de oliveira no canteiro onde antes viveu a oliveira de 1300 anos. Foi comovente ver todos reunidos. Cada um com seus próprios pensamentos e com suas próprias lembranças. Na noite que se seguiu, choveu docemente e as folhas das oliveiras foram lavadas para que acordassem ainda mais brilhantes. A estátua das crianças foi, desde então, muito admirada por todos que passavam pela praça, e como ela foi feita, assim como a placa, de um metal brilhante, as mulheres acharam por bem, confeccionar roupas - um vestido branco e uma camisa vermelha - e colocarem nas estátuas. Fizeram inclusive, várias mudas de roupas e todos os dias pela manhã, as crianças esculpidas acordam com roupas limpas, passadas e cheirosas. Nunca se soube de um dia em que um pássaro que gralha tivesse feito titica nas estátuas, mas é comum de se ver as aves saltitando e ciscando ao redor das estátuas.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

I - A praça central


Então começa aqui essa história. E é mesmo uma história e não estória, pois os fatos narrados aconteceram mesmo, e muitas testemunhas viram... E sentiram.
Para dizer a verdade, era um tempo de muito frio, daqueles frios de inverno, que vêm logo depois de um outono cheio de frutas que vem logo após um verão de muito sol e muita praia. Um frio intenso com todos esperando que a primavera chegue com suas flores de mil pétalas e aromas. E do outono que findara, lindas azeitonas caíram das oliveiras da praça central.
Sempre que se passa pela praça central, duas coisas chamam muito a atenção: uma delas são os pássaros que gralham a cada meia hora acompanhando o badalar dos sinos da matriz e a outra, as azeitonas que recobrem o chão nesta época do ano.
No último senso botânico e zoológico, o próprio prefeito contou 12 espécies diferentes de pássaros que gralham e 8 tipos de oliveiras só na praça central. Em dias mais quentes, diz-se na cidade que mais de 40000 pássaros que gralham vêm habitar a praça, e que, quando voam em revoadas, chega-se a pensar que a noite veio mais cedo ou que um grande zeppelin veio visitar os moradores. As gralhas costumam ter as penas bem pretas e brilhantes, mas muitos conseguem ver gralhas azuis escuras, verde-oliva, vermelhas e até brancas. Isto não sei se é verdade, mas foi o que me garantiu um velho senhor de 108 anos que sempre viveu na casa de número três, bem ao lado da praça.
Ele contou também, que quando tinha 7 anos, viu quando os homens da fábrica de azeite quiseram acabar com elas, ateando fogo a uma das oliveiras. O velho senhor, que tinha 7 anos, e todas as outras crianças da praça correram com baldes, panelas, copos cheios de água e fizeram de tudo para apagar o fogo. A tragédia foi muito grande: uma menina de vestido branco e um menino de camisa vermelha lutaram contra o fogo na oliveira mais antiga, com 1300 anos, que ardia no centro da praça. Foram vistos pequenos pássaros que gralham caindo dos ninhos intoxicados pela fumaça. A menina e o menino sopravam ar para que os pequenos pássaros pudessem se recuperar e muitos deles de fato conseguiram voar para longe com estes "sopros de vida".
Finalmente o fogo foi controlado. Contou-se a morte de 8 árvores que na cidade já estavam antes que as ruas tivessem chegado, 183 pássaros que gralham e de duas crianças: uma menina de vestido branco e um menino de camisa vermelha.
Desde então, diz-se que as gralhas brancas são as que receberam o sopro de vida da menina de vestido branco e as vermelhas receberam o sopro de vida do menino de camisa vermelha.
Os habitantes tentam todos os dias contar os pássaros vermelhos e brancos, mas eles voam rápido e alto, sempre com medo que alguém tente botar fogo nas árvores.
Os donos da fábrica fugiram, e soube-se depois que de tanto arrependimento, nunca mais conseguiram falar com ninguém e foram morar isolados no alto da colina dos desvairados até o fim de suas vidas.
A fábrica continua, mas os novos donos plantaram muitas outras oliveiras e não se importam se pássaros vêm comer seus frutos.