quarta-feira, 7 de março de 2012

XI – Difíceis escolhas

Você, seus amigos e parentes e eu também, gostamos de coisas boas, bonitas e de qualidade. Isto não é ruim, a menos que tenha a ver com discriminação ou preconceito. Pessoas, por exemplo, não escolhem ser feias ou bonitas, magras ou gordas, pobres ou ricas, então, não é justo que gostemos mais ou menos de uma pessoa por critérios como estes.
É claro, porém, que com coisas, casas, e até frutas, isto seja diferente: podemos gostar de uma coisa mais ou menos em função da aparência, do tamanho, da cor e assim por diante.
E com as azeitonas, isto não é diferente. Durante a catação, são feitas escolhas baseadas no tamanho, na cor, no brilho, na textura e no cheiro. Desde bem pequenas, as crianças aprendem a separar as azeitonas colhidas conforme suas características, e classifica-las para diferentes destinações. Há então as azeitonas que serão usadas para o azeite, para as conservas, para a pasta de azeitona, para o plantio e, não menos nobre, para os compostos de esterco, que adubam as outras plantas.
Nenhuma criança ou adulto normal acha que está fazendo algum tipo de discriminação ao escolher as azeitonas, mas muitos, em seu intimo, preferem escolher mais azeitonas bonitas (aos seus olhos) do que feias (também aos seus olhos). Existe assim, uma competição velada, mesmo que não haja nenhum prêmio para quem seleciona mais de um tipo ou de outro tipo. A única e severa exigência, é que nos toneis reservados para cada tipo de azeitona só exista aquele tipo específico. As misturas resultantes de seleções mal feitas causam problemas na preparação final das azeitonas para seu consumo, e, para isto existem prêmios: o prêmio 100% pureza, o prêmio uniformidade, o prêmio velocidade. Todos recompensam a execução perfeita do trabalho, mas não o tipo de azeitona selecionada.
Logo cedo, pequenos grupos se reunem ao redor de determinadas oliveiras e é fácil ver pessoas mais velhas apontando para o chão, segurando uma azeitona e olhando atentamente para ela contra o sol, gesticulando os braços e falando muito, sempre se direcionando para uma plateia muito atenta e interessada de crianças, jovens e outros adultos. São como mestres que conhecem em detalhes todas as características dos frutos, que sabem como extrair o maior potencial possível de cada pequena azeitona e como melhor aproveitar as habilidades de cada habitante do vilarejo para que todos se sintam além de felizes, realizados.
As crianças menores, de 2 ou 3 anos, ficam brincando de colher e selecionar, mesmo que depois tudo o que elas fizeram tenha que ser refeito, e, muitas vezes, os mais experientes se surpreendem ao ver o quão bem as pequenas crianças fizeram a seleção. Parece algo mágico, mas na verdade é como um instinto.
A pequena Salete era uma dessas crianças que desde muito cedo tinha essa habilidade de selecionar com perfeição os frutos, compondo com grande velocidade toneis perfeitos, com azeitonas todas da mesma cor, textura, tamanho e grau de maturidade. Aos 4 anos ela ganhou dois prêmios só na parte da manhã, o de velocidade e o de uniformidade. Aos 6 anos, era ela que ficava ensinando os outros em uma rodinha sob a oliviera da esquina com a rua dos Barcos, perto da casa da avó, onde ela morava. Os grupos que ela orientava sempre se destacaram pela qualidade do trabalho.
Já o Rufião era um preguiçoso que apesar de adorar o festival, não tinha o menor jeito para a coisa: ficava na sombra, fazendo caminhos pelo chão, formando desenhos com as azeitonas de diferentes formas e cores e nunca participava dos eventos e jogos.
Essa é a cor da festa: todos os tipos de pessoas, todas as vontades, a tolerância, a alegria e o desprendimento e principalmente a união em torno de um ideal de vida comunitária, de respeito mutuo e de sebedoria, da garantia de que no ano seguinte tudo será melhor ainda do que neste

terça-feira, 6 de março de 2012

X – O festival da catação

Há eventos cíclicos importantes, como por exemplo o sol nascendo todas as manhãs, a lua enchendo de luz o céu a cada 28 dias, a primavera a perfumar os bosques logo após os invernos, as regras das mulheres, as refeições a cada 4 horas as séries de Fourier e assim por diante. Físicos, biológicos, matemáticos ou astronômicos, não importa a natureza, não há evento cíclico tão esperado quanto o festival da catação.
Pode até parecer exagerado, mas é preciso entender o contexto: uma cidade que nasceu e cresceu vendo isto acontecer, tentando enteder os porquês e as razões – e sem ter um velho sábio andarílho espanhol para explicar ou ajudar.
Pode ser até que hoje em dia, datas como a Páscoa, o Natal ou mesmo o Halloween sejam muito aguardadas pelos moradores – principalmente por influência da igreja católica e da televisão (sem querer igualar as duas coisas) – mas nada se compara, nem de longe, ao festival da catação: um dia que não está no calendário, que não tem um santo, que não tem um fato histórico nacional, mas que, por outro lado, está tão enraizado na vida das pessoas quanto a necessidade de respirar, de ter o sangue circulando nas veias ou de dizer bom dia todas as manhãs.
Mais do que isso, é algo que tem sido vivido pelas gerações, pelas crianças, por seus pais, pelos avós, pelos bisavós (alguns já falecidos), pelos tataravós (muitos deles já falecidos), e por todos os demais falecidos mas que sempre estarão vivos na memória e na vida dos que vivem.
O dia da catação é antes de mais nada um dia de louvor ao trabalho duro e à recompensa que nos é oferecida por um trabalho bem realizado. O prêmio nos é dado por aquele que é o único capaz de nos recompensar – ou aquela, como queiram: o Senhor do mundo – ou a mãe natureza. Não importa, é a mesma coisa, um ou outro são entidades além do que podemos compreender, porém inteiramente relacionados conosco, ou com os habitantes do vilarejo.
A lista de preparativos para o festival da catação é extensa e para que tudo fique pronto à tempo, muitos dias são necessários. O mais impressionante, entretanto, é que não há qualquer tipo de dotação orçamentária da prefeitura ou do governo. Também não há nenhuma empresa responsável pela organização do evento, nem tão pouco divulgação pela televisão, rádio ou internet, nas redes sociais. Não há quem se atreva a promover vendas especiais ou sugerir que se compre alguma recordação ou mesmo camisetas comemorativas da data – que não é uma data fixa, mas aproximada.
Estranho, você diria. Concordo, mas repito que é preciso entender bem o cotexto. Não vou ficar explicando. Mergulhe com vontade e entre dentro da cidade-vilarejo e enxergue na alma de cada morador a importância de tudo isso. Não há nada de complicado; o que existe é uma simplicidade incompreensível.
De onde saem as lonas estendidas no chão?
Quem prepara os sucos de frutas e os doces e salgados servidos à vontade nos dias de festival?
Por que os passaros que gralham se esforçam para não estragar os frutos?
Quem escolhe tão criteriosamente as roupas de cada um para o evento?
Quem decide quantas e quais brincadeiras vão haver, desde pirâmides humanas, competições de força – invariavelmente vencidas pelo menino de 8 anos já pai de família – concursos de culinária, correios elegantes e tantas outras?
Quem cuida da limpeza antes, durante e após o festival?
Não pense que existe um nome ou um departamento responsável. Tudo acontece organicamente como se a cidade fosse um ser vivo, e seus habitantes as células, conscientes de sua importância e papel.
E ao final, todos sentem que este organismo cresceu e melhorou. Todo ano acontece desta forma, e, a julgar pelo que vejo hoje, vai continuar a acontecer por muitos e muitos anos...
Reza a lenda que o primeiro festival aconteceu quando ainda as pessoas viviam em clãs, cada família liderada por um ou mais guerreiros que defendiam suas propriedades – casas simples feitas de pedras e recobertas por todo tipo de vegetação que se parecesse com palha.
Naquele tempo, era comum haver incêndios e mortes causadas por fenômenos naturais, desde chuvas, inundações, ventos muito fortes e assim por diante.
Na maioria dos lugares onde havia algum tipo de civilização, as clãs se degladiavam e saqueavam-se umas às outras. Alí, porém, as coisas eram diferentes desde muito antes: como havia as árvores no local que hoje é chamado de praça central, todos se sentiam atraídos por aquele local que parecia ter algum tipo de magia ou coisa sobrenatural. Ficavam as clãs alí a observar na sombra do arvoredo, a ouvir os pássaros que gralham – e que já naquele tempo gralhavam – e a rir com as manobras arrojadas que eles faziam nos ares.
Com isto, moças de uma clã encontravam-se com rapazes de outras clãs, e assim começavam a observar os pássaros juntos. Bem, o resto da estória não preciso contar – pelo menos não agora, porque na verdade, alguns desses encontros valem ser descritos em detalhes de tão bonitos que eram, mas o que importa é que as clãs, ao invés de serem rivais, uniam-se em torno da praça central. Formou-se então o que talvez tenha sido a primeira comunidade, onde cada um ajudava o seu próximo naquilo que fosse necessário, e, em louvor ao que deu origem a essa comunidade, instituiu-se o que hoje é chamado de festival da catação.
Incialmente apenas os casais participavam, meio como se fosse um ritual de fertilidade que representava a capacidade das famílias crescerem e progredirem, mas não demorou muito para que todos na agora cidade, participassem de todas as etapas da festividade.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

IX – A menina muito magra

Numa propriedade muito bonita, onde tudo que fosse plantado nascia mais bonito do que nos outros lugares, vivia uma menina muito magra e muito fraquinha. Nada ela queria comer, nada ela queria fazer. Achavam até que ela tinha uma doença chamada bulimia, mas isso não era verdade, porque ela também se achava magra demais.
A menina muito magra passeava no meio do pomar e olhava todas aquelas árvores com frutas suculentas: macieiras com maçãs vermelhas e lustrosas, pessegueiros com pêssegos tão cheirosos, pereiras com macias pêras amarelas, goiabeiras, figueiras, abacateiros, limoeiros e pés de laranja. A lista é imensa, mas acompanhando a caminhada da menina muito magra, ela passava pelo imenso trigal e acabava sempre chegando à enorme oliveira que ficava no alto do morro. Apoiada em seu esqueleto que se equilibrava não se sabe como, de tão pouca carne e tão pouco músculo - bem ao contrário do menino de 8 anos que depois ficou mais velho - a menina muito magra sentava-se à sombra da oliveira e ficava olhando meio de lado para a vista de lá de cima.
Sempre em sua casa havia todo o tipo de fruta, todas graúdas, suculentas e saborosas. Todas saudáveis e doces. Acontece, porém, que a menina muito magra olhava para a oliveira e via aquelas frutinhas verdes, douradas, marrons e roxas e ficava pensando em como seria o gosto das frutas. Por ser muito antiga e por nunca ter sido podada, a oliveira acabou ficando muito alta. Os frutos ficavam bem lá encima e ninguém alcançava. Na propriedade, ninguém se arriscava a subir na árvore, mesmo porque, só tinham experimentado as azeitonas caídas e acharam o gosto horrível. E ninguém sabia como prepará-las. A menina muito magra ficava chateada, porque ela não achava justo não poder comer os frutos da árvore que ela considerava a mais bonita, e, por causa disso, não tinha interesse em comer os frutos das outras árvores mesmo que ela também as achasse bonitas.
Nesta noção de igualdade bastante distorcida, a menina muito magra acabou não querendo comer também os ovos das melhores galinhas, as carnes dos melhores animais de abate e nem querendo beber o leite das mais saudáveis cabras e vacas leiteiras.
As cozinheiras da propriedade faziam de tudo para que a menina muito magra se animasse e comesse alguma coisa, mas não tinha conversa. A pobre mãe rica da menina muito magra chorava escondida de tanta tristeza e todas as noites, enquanto a esquálida filha dormia ela ia até o quarto dela e com uma pequena colher, colocava na boca da filha um pouco de sopa diluída para que ela engolisse sem perceber. Quando a menina muito magra não engasgava ela se nutria um pouco, mas isto não era suficiente.
Um dia passou pela propriedade um homem muito velho e sábio vindo da Espanha conhecido como o sábio andarilho. O sábio andarilho buscava como de costume a essência da vida, como se fosse possível que isto fosse encontrado. Em muitos cantos do mundo ele havia estado, lugares de fartura, de bonança, mas também de miséria e de tristeza. Nestas andanças todas, ele achava partes do sentido da vida, mas sempre considerava que faltava algo.
Quando o caso da menina muito magra foi levado até o sábio andarilho, ele logo achou que mais um pedacinho do sentido da vida estava ali, e não demorou muito tempo até que o sábio andarilho e a menina muito magra se encontrassem a conversar no alto do morro sob a sombra da oliveira.
Logo no início o sábio andarilho não entendeu porque os frutos de uma oliveira tão bela não eram usados. Nas conversas com a menina muito magra ele foi descobrindo que ali ninguém sabia das propriedades e das utilidades das oliveiras. Ninguém sabia que o fruto comido direto do pé era muito ruim - apesar de o menino de 8 anos não concordar - mas que após o devido preparo, ficava uma delícia.
E durante meses os dois caminharam juntos pelo campo de trigo, pelos pomares, pela granja e pelos currais. Iam até o rio, olhavam a pequena cascata e conversavam, conversavam e conversavam.
O andarilho sábio resolveu então combinar com a menina muito magra que eles fariam uma poção mágica que curaria a magreza dela. Esta poção seria um segredo só dos dois, e todos ficariam espantados com o resultado. E com isto, o esperto do sábio andarilho, ensinou à menina muito magra como colher as azeitonas do alto da oliveira - eles usavam cestinhas na ponta de varas muito longas - e a extrair das azeitonas o líquido dourado. Tudo feito escondido numa cabana sob a oliveira. Demorou muito tempo até juntarem 6 quilos de azeitonas, até espremer tudo e fazer escoar todo o azeite. A menina muito magra olhava, anotava em um caderninho com cadeado, e com o passar do tempo fazia tudo o que aprendia. A menina muito magra não sabia quanto tempo levaria para que ficasse pronta a poção, mas o sábio andarilho dizia a ela que ainda que ela sentisse vontade de provar o líquido não poderia pois ainda não estava pronto.
Até que um dia, após coar uma última vez o líquido, eles colocaram em uma garrafa de vidro quase um litro e olharam contra o sol. Os olhos da menina muito magra brilharam, um sorriso surgiu em seus magros lábios e uma lágrima escorreu dos olhos do sábio andarilho.
- Posso beber agora a poção? - perguntou a menina muito ansiosamente.
- Não magérrima menina - respondeu o sábio andarilho - lembre-se de que você nada quer comer ou beber, e, além disso, a poção não está pronta ainda.
No dia seguinte, saíram os dois para fazerem a mesma caminhada e o sábio andarilho foi explicando como seria a finalização da poção. A menina muito magra foi anotando tudo:
No limoeiro devia ser colhido o melhor limão maduro, e só um limão, no moinho do trigal deviam ser pegas duas xícaras de farinha soltinha e fresca; da melhor galinha deveriam ser escolhidos 2 ovos grandes; da mais bela vaca deveria ser ordenhado um copo de leite e da grande árvore de canela deveria ser retirado um pedacinho da casca.
À noite levaram tudo até a cozinha da grande propriedade, mais o vidro de azeite e um feixe de lenha, e acenderam o grande forno no meio da cozinha. O sábio andarilho separou ainda da dispensa da cozinha uma xícara de açúcar, uma colherinha de fermento que era usado nos pães e um pouco de sal.
O sábio andarilho disse então para a menina muito magra que a poção só funcionaria se ela mesma a preparasse, e, assustada mas ao mesmo tempo muito orgulhosa, a menina muito magra foi seguindo as instruções do sábio andarilho.
- Forre uma forma com papel vegetal (naquele tempo não havia papel alumínio) e derrame um pouco do azeite sobre o papel. Isto não faz parte da poção, mas não deixa que ela grude na forma. - Explicou o sábio andarilho.
- O limão que você escolheu deve ser bem lavado e você deve ralar a casca em uma tijelinha. - Continuou o sábio andarilho.
A menina muito magra olhava para o sábio andarilho pegava os apetrechos balançava o frágil corpo, ficava nervosa, mas ia fazendo tudo direitinho. Depois, o sábio andarilho disse a ela para peneirar a farinha em um pote limpo e misturar as raspas da casca do limão.
Enquanto isso, o sábio andarilho, como era sábio, resolveu ele mesmo, quebrar os dois ovos em outra tigela e batê-los bem junto com uma pitadinha de sal que a menina muito magra acrescentou. A menina muito magra ficou preocupada, achando que a poção não funcionaria, mas o sábio andarilho riu pondo as mãos na barriga e disse com um sotaque espanhol muito forte: - Porque você não acredita num velho sábio pequena magérrima? E foi tão convincente o sábio andarilho que daí em diante os dois foram fazendo tudo juntos: misturaram pouco a pouco o açúcar da xícara aos ovos e mexeram bem, depois colocaram uma xícara do azeite que eles tinha feito e foram mexendo, depois deitaram todo o leite sobre a mistura e continuaram mexendo e finalmente adicionaram a farinha que tinha sido peneirada e foram mexendo.
Cada vez mais a menina muito magra ia ficando espantada, pois a tal mistura foi ficando mais espessa, de uma cor muito bonita, clara como a cor da pele dela e, quando a mistura ficou bem uniforme, os dois despejaram na forma que a menina muito magra tinha preparado espalharam mais açúcar por cima até ficar branquinho e depois a menina muito magra ralou a casca de canela enquanto o sábio andarilho disse as palavras mágicas: - Cresça e não fique magérrimo!
Colocaram a forma dentro do forno onde a lenha mantinha uma temperatura de uns 150 graus e ali deixaram por uma meia hora. Em seguida, abriram e a menina afoita quis logo pegar um pedaço do bolo que tinha um cheiro realmente mágico, mas o sábio andarilho não deixou e disse:
- Se você não esperar pelo menos uns dez minutos até que a poção esfrie, nada vai funcionar - Ele sabia que a menina muito magra iria se queimar...
Esperaram tão ansiosos quanto um pai esperando o nascimento do filho na maternidade e, finalmente chegou o momento: o sábio andarilho aguardou em silêncio e como que por mágica, a menina muito magra cortou uma fatia a saboreou, ah, como ela saboreou! Depois comeu mais um pedaço, e outro ainda. O que sobrou, ela guardou em uma caixa de metal e no dia seguinte serviu aos pais explicando:
- Esta é a forma de comer os frutos da grande oliveira!
Os pais e nem ninguém mais viu o sábio andarilho que saiu dias depois após despedir-se da menina que já não era tão magra e agradecer a ela pois mais um pedacinho do sentido da vida ele tinha descoberto: como fazer alguém feliz e realizado.
A menina, desde então, usou a poção muitas vezes e foi misturando outros ingredientes, como maçãs, suco de laranja e outros, mas sempre fazia a poção original.
Na grande propriedade não havia quem não ficasse na porta da grande cozinha esperando o momento em que ficava pronta mais uma fornada da poção, tudo isso graças ao sábio andarilho que sabia como extrair o líquido mágico da oliveira.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

VIII – A escolha do destino

Ao abrir os olhos, a azeitona preta ainda viu a azeitona verde dando risada com as outras azeitonas passeadeiras. Aquilo parecia uma continuação do sonho: uma brisa, um calor da manhã, o barulho das risadas... Era como se ela estivesse vendo a cena junto ao mar. Nisso, a azeitona verde parou e deu uma risada olhando para a azeitona preta.
- Dormi! - Exclamou a azeitona preta.
- Como pode dormir num momento importante como este? - Perguntou a azeitona verde, que na verdade considerava todos os momentos importantes. - Dentro de alguns instantes vai começar o festival e nossos destinos serão marcados!
O festival, ao qual a azeitona verde se refere, é o festival da catação, como costumam chamar na cidade. Sempre na época em que caem as azeitonas por causa das bicadas dos pássaros que gralham nos cabinhos das azeitonas, é feito o festival: a praça é toda coberta com lonas, dias antes, tudo é bem limpo, e as pessoas evitam entrar na praça para não sujar nada. Só entram as mulheres que trocam o vestido branco da estátua da menina do vestido branco e a camisa vermelha do menino da camisa vermelha, os funcionários da prefeitura que cuidam da limpeza do pequeno lago regado pela cascata dos borbotões e mais ninguém. Os preparativos começam três ou quatro dias antes do dia do festival.
Dias depois do festival da catação, acontece o festival da colheita, que é para colher aquelas azeitonas que já estão no ponto, mas que, por um motivo ou outro, não tiveram seus cabinhos bicados pelos pássaros que gralham.
- Nosso destino está marcado desde o dia em que brotamos. - Respondeu a azeitona preta como se soubesse de tudo.
- Não, não é verdade! - Revoltou-se a azeitona verde. - Nosso destino vai sendo mudado o tempo todos! Nós podemos mudar o nosso destino! Nós podemos escolher o que queremos ser, qual será nossa função social!
- Talvez... - Duvidou a azeitona preta muito cética. - Já ví muita azeitona que queria ser petisco e no fim virou azeite... Nem azeite virgem era, mas do misturado.
A azeitona verde pensou que, desta vez, quem estava sendo preconceituosa era a azeitona preta; lembrou-se da discussão que teve sobre as azeitonas verdes serem melhores e retrucou:
- Qual o problema de virar azeite? Você sabe que mesmo as uvas não se importam de virar vinagre, se elas podiam virar vinho...
Mas no fundo no fundo, nem a azeitona verde e nem a azeitona preta queriam ser azeite. Isso era uma espécie de tabu até entre todas as azeitonas. Alguns relatos diziam que as azeitonas que não eram muito vistosas acabavam sendo usadas para o azeite. Isso não era comprovado, e, de fato, não era verdade e nem é. Nas grandes propriedades, há plantações inteiras que se destinam só à produção do azeite, mesmo que o fruto seja da melhor qualidade para ser usado como petisco.
- Eu não sei... - Relutou a azeitona preta. - Nunca contaram direito as coisas, mas pelo que sei, para fazer o azeite, somos espremidas e pressionadas e vamos secando, secando...
Houve um silêncio terrível, algo que nenhuma das duas queria pensar e que, no entanto, era inevitável.
- Espremidas? - Repetiu a azeitona verde como se estivesse dizendo o óbvio. - E então, qual o problema, madurão?
- O que é isso de madurão? - esbravejou a nem tão madura assim azeitona preta. - Porque não respeita um pouco o sentimento dos outros?
- Desculpe-me, mas você é um bocado sensível, não? Não estou querendo te ofender, só estou brincando. - Justificou-se a azeitona verde - E, além disso, você está se preocupando à toa: não é preciso temer algo que é tão normal, algo que faz parte de nossa função social.
A tal "função social" era como um mantra para a azeitona verde e para a maioria das azeitonas. Era um deus oculto que se manifestava a cada temor delas. Por isso, a azeitona preta sabia que, por trás das palavras da azeitona verde havia também um grande receio.
- Certo, então, mas você não se importa em ser transformado em azeite? - Insistiu a azeitona preta.
- Vou te contar algo que minha avó descreveu e que me faz pensar diferente de você. - Começou a azeitona verde. - Mas antes, respondendo a sua pergunta, eu, na verdade, tenho muita vontade mesmo, é de ser o enfeite de um prato de bacalhau...
A azeitona preta ficou esperando e pensando na opção da azeitona verde. Nem teve muito tempo de pensar porque a azeitona verde começou a contar o que dizia a avó dela.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

VII – O menino de 8 anos

Ninguém acreditava que fosse possível ou até que fosse saudável, comer uma azeitona que não tivesse passado por este processo. Claro que não era assim como no sonho da azeitona preta, e as azeitonas não ficam na praia brincando enquanto se salgam. O que acontece, é que depois de colhidas, as azeitonas são levadas até enormes tonéis com água e sal e ali ficam num processo chamado de "cura", que é como se fossem cozidas sem que seja preciso levar ao fogo. Quando isto é feito, alguns componentes da azeitona que são bem ácidos e amargos são "puxados" para fora pela força do sal. Mas isto não é assim fácil não: tem uma porção de truques e etapas que só os grandes preparadores de azeitonas conhecem, e tem também temperos que podem ser acrescentados como pimenta, ervas, folhas de loro, alho, suco de limão e outras coisas. Pode levar 15, 20 dias, 1, 2 e até 3 meses, sempre trocando a água e o sal, até que fique realmente bom! Se não trocar, embolora, fica uma porcaria só... Para cada uso é uma receita diferente. Só que no sonho da azeitona preta, ela sonhou aquilo que sempre foi contado a ela, e, aquilo que sempre se avistava do alto das oliveiras, um mar infinito e momentos de descontração. Mas um banhão de tonel também parecia, para as azeitonas, algo muito divertido. Azeitonas são muito criativas, fazer o que...
Acontece que um garoto de 8 anos ficou famoso na cidade depois que foi visto comendo direto dos ramos da oliveira, as frutas que iam amadurecendo e até as mais verdinhas. As outras crianças achavam graça e tentavam fazer igual, mas saiam cuspinho pedaços para todos os lados, ficavam com a boca amarrando e à noite tinha dores de barriga e enjoos. O garoto de 8 anos, por sua vez, morria de rir e comia mais e mais azeitonas. A tia dele, que trabalhava no serviço de saúde, preocupada, chamou alguns médicos para estudarem o caso, mas, ninguém se arriscou a estudar o assunto mais aprofundadamente. Todos que experimentavam as azeitonas "in natura" achavam horrível, mas o garoto de 8 anos comia, ria e comia. Quase mais nada ele comia, só um tanto de leite de vez em quando. O espantoso era que o menino de 8 anos era forte como um touro, corria velozmente pelas ruas e carregava mais peso que um adulto. Ninguém tinha coragem de dizer que era por causa das azeitonas colhidas do pé e ninguém tinha coragem de tentar seguir o mesmo regime dele. O menino de 8 anos foi crescendo - e é claro, deixou de ser o menino de 8 anos - sempre forte, trabalhador e bem disposto. Passou a gostar muito de azeitonas curtidas também, mas nunca deixou de comer as azeitonas do pé.
Hoje, o menino de 8 anos deve ter uns 50 e tantos anos, mas todos acham que ele tem menos do que 30, de tanta saúde que ele tem. Não é difícil vê-lo na praça central, nas horas de folga, escolhendo frutos graúdos e lustrosos e saboreando com vontade. Antes as pessoas se espantavam mesmo, olhavam com cara de nojo, torciam o nariz, as mães tapavam o rosto dos filhos pequenos e, os mais incautos tentavam fazer igual e saiam tossindo e cuspindo. Hoje não, o menino de 8 anos - que tem mais de 50 e parece ter menos do que 30 - é figurinha conhecida e todos passam e cumprimentam, todos admiram seu porte atlético e sua risada solta, todos conversam com ele, e até, muitos produtores da região e até de regiões bem distantes, pedem que ele prove as azeitonas para saber quando é o melhor momento de colher, qual o melhor tipo para plantar, quanto de sal deve ser usado, quanto limão e assim por diante.
As azeitonas no pé ficam todas agitadas quando ele passa por perto, e, no meio delas, ser apanhada pelo menino de 8 anos - que não tem mais 8 anos - é considerada uma grande honra. Todas clamam que, assim como o monumento à Eulália a juíza e as estátuas das duas crianças, deveria ter também uma homenagem ao menino de 8 anos - você já sabe - para que todos sempre se lembrem dele. Uma vez, por sinal, uma repórter o entrevistou e perguntou a ele se ele achava que deveria haver um monumento em homenagem a ele para que o povo sempre lembrasse. O menino de 8 anos - blá, blá, blá - deu uma demorada gargalhada do alto de seus mais de 2 metros e disse:
- Porque você acha que o povo se esqueceria de mim?