quarta-feira, 7 de março de 2012

XI – Difíceis escolhas

Você, seus amigos e parentes e eu também, gostamos de coisas boas, bonitas e de qualidade. Isto não é ruim, a menos que tenha a ver com discriminação ou preconceito. Pessoas, por exemplo, não escolhem ser feias ou bonitas, magras ou gordas, pobres ou ricas, então, não é justo que gostemos mais ou menos de uma pessoa por critérios como estes.
É claro, porém, que com coisas, casas, e até frutas, isto seja diferente: podemos gostar de uma coisa mais ou menos em função da aparência, do tamanho, da cor e assim por diante.
E com as azeitonas, isto não é diferente. Durante a catação, são feitas escolhas baseadas no tamanho, na cor, no brilho, na textura e no cheiro. Desde bem pequenas, as crianças aprendem a separar as azeitonas colhidas conforme suas características, e classifica-las para diferentes destinações. Há então as azeitonas que serão usadas para o azeite, para as conservas, para a pasta de azeitona, para o plantio e, não menos nobre, para os compostos de esterco, que adubam as outras plantas.
Nenhuma criança ou adulto normal acha que está fazendo algum tipo de discriminação ao escolher as azeitonas, mas muitos, em seu intimo, preferem escolher mais azeitonas bonitas (aos seus olhos) do que feias (também aos seus olhos). Existe assim, uma competição velada, mesmo que não haja nenhum prêmio para quem seleciona mais de um tipo ou de outro tipo. A única e severa exigência, é que nos toneis reservados para cada tipo de azeitona só exista aquele tipo específico. As misturas resultantes de seleções mal feitas causam problemas na preparação final das azeitonas para seu consumo, e, para isto existem prêmios: o prêmio 100% pureza, o prêmio uniformidade, o prêmio velocidade. Todos recompensam a execução perfeita do trabalho, mas não o tipo de azeitona selecionada.
Logo cedo, pequenos grupos se reunem ao redor de determinadas oliveiras e é fácil ver pessoas mais velhas apontando para o chão, segurando uma azeitona e olhando atentamente para ela contra o sol, gesticulando os braços e falando muito, sempre se direcionando para uma plateia muito atenta e interessada de crianças, jovens e outros adultos. São como mestres que conhecem em detalhes todas as características dos frutos, que sabem como extrair o maior potencial possível de cada pequena azeitona e como melhor aproveitar as habilidades de cada habitante do vilarejo para que todos se sintam além de felizes, realizados.
As crianças menores, de 2 ou 3 anos, ficam brincando de colher e selecionar, mesmo que depois tudo o que elas fizeram tenha que ser refeito, e, muitas vezes, os mais experientes se surpreendem ao ver o quão bem as pequenas crianças fizeram a seleção. Parece algo mágico, mas na verdade é como um instinto.
A pequena Salete era uma dessas crianças que desde muito cedo tinha essa habilidade de selecionar com perfeição os frutos, compondo com grande velocidade toneis perfeitos, com azeitonas todas da mesma cor, textura, tamanho e grau de maturidade. Aos 4 anos ela ganhou dois prêmios só na parte da manhã, o de velocidade e o de uniformidade. Aos 6 anos, era ela que ficava ensinando os outros em uma rodinha sob a oliviera da esquina com a rua dos Barcos, perto da casa da avó, onde ela morava. Os grupos que ela orientava sempre se destacaram pela qualidade do trabalho.
Já o Rufião era um preguiçoso que apesar de adorar o festival, não tinha o menor jeito para a coisa: ficava na sombra, fazendo caminhos pelo chão, formando desenhos com as azeitonas de diferentes formas e cores e nunca participava dos eventos e jogos.
Essa é a cor da festa: todos os tipos de pessoas, todas as vontades, a tolerância, a alegria e o desprendimento e principalmente a união em torno de um ideal de vida comunitária, de respeito mutuo e de sebedoria, da garantia de que no ano seguinte tudo será melhor ainda do que neste

terça-feira, 6 de março de 2012

X – O festival da catação

Há eventos cíclicos importantes, como por exemplo o sol nascendo todas as manhãs, a lua enchendo de luz o céu a cada 28 dias, a primavera a perfumar os bosques logo após os invernos, as regras das mulheres, as refeições a cada 4 horas as séries de Fourier e assim por diante. Físicos, biológicos, matemáticos ou astronômicos, não importa a natureza, não há evento cíclico tão esperado quanto o festival da catação.
Pode até parecer exagerado, mas é preciso entender o contexto: uma cidade que nasceu e cresceu vendo isto acontecer, tentando enteder os porquês e as razões – e sem ter um velho sábio andarílho espanhol para explicar ou ajudar.
Pode ser até que hoje em dia, datas como a Páscoa, o Natal ou mesmo o Halloween sejam muito aguardadas pelos moradores – principalmente por influência da igreja católica e da televisão (sem querer igualar as duas coisas) – mas nada se compara, nem de longe, ao festival da catação: um dia que não está no calendário, que não tem um santo, que não tem um fato histórico nacional, mas que, por outro lado, está tão enraizado na vida das pessoas quanto a necessidade de respirar, de ter o sangue circulando nas veias ou de dizer bom dia todas as manhãs.
Mais do que isso, é algo que tem sido vivido pelas gerações, pelas crianças, por seus pais, pelos avós, pelos bisavós (alguns já falecidos), pelos tataravós (muitos deles já falecidos), e por todos os demais falecidos mas que sempre estarão vivos na memória e na vida dos que vivem.
O dia da catação é antes de mais nada um dia de louvor ao trabalho duro e à recompensa que nos é oferecida por um trabalho bem realizado. O prêmio nos é dado por aquele que é o único capaz de nos recompensar – ou aquela, como queiram: o Senhor do mundo – ou a mãe natureza. Não importa, é a mesma coisa, um ou outro são entidades além do que podemos compreender, porém inteiramente relacionados conosco, ou com os habitantes do vilarejo.
A lista de preparativos para o festival da catação é extensa e para que tudo fique pronto à tempo, muitos dias são necessários. O mais impressionante, entretanto, é que não há qualquer tipo de dotação orçamentária da prefeitura ou do governo. Também não há nenhuma empresa responsável pela organização do evento, nem tão pouco divulgação pela televisão, rádio ou internet, nas redes sociais. Não há quem se atreva a promover vendas especiais ou sugerir que se compre alguma recordação ou mesmo camisetas comemorativas da data – que não é uma data fixa, mas aproximada.
Estranho, você diria. Concordo, mas repito que é preciso entender bem o cotexto. Não vou ficar explicando. Mergulhe com vontade e entre dentro da cidade-vilarejo e enxergue na alma de cada morador a importância de tudo isso. Não há nada de complicado; o que existe é uma simplicidade incompreensível.
De onde saem as lonas estendidas no chão?
Quem prepara os sucos de frutas e os doces e salgados servidos à vontade nos dias de festival?
Por que os passaros que gralham se esforçam para não estragar os frutos?
Quem escolhe tão criteriosamente as roupas de cada um para o evento?
Quem decide quantas e quais brincadeiras vão haver, desde pirâmides humanas, competições de força – invariavelmente vencidas pelo menino de 8 anos já pai de família – concursos de culinária, correios elegantes e tantas outras?
Quem cuida da limpeza antes, durante e após o festival?
Não pense que existe um nome ou um departamento responsável. Tudo acontece organicamente como se a cidade fosse um ser vivo, e seus habitantes as células, conscientes de sua importância e papel.
E ao final, todos sentem que este organismo cresceu e melhorou. Todo ano acontece desta forma, e, a julgar pelo que vejo hoje, vai continuar a acontecer por muitos e muitos anos...
Reza a lenda que o primeiro festival aconteceu quando ainda as pessoas viviam em clãs, cada família liderada por um ou mais guerreiros que defendiam suas propriedades – casas simples feitas de pedras e recobertas por todo tipo de vegetação que se parecesse com palha.
Naquele tempo, era comum haver incêndios e mortes causadas por fenômenos naturais, desde chuvas, inundações, ventos muito fortes e assim por diante.
Na maioria dos lugares onde havia algum tipo de civilização, as clãs se degladiavam e saqueavam-se umas às outras. Alí, porém, as coisas eram diferentes desde muito antes: como havia as árvores no local que hoje é chamado de praça central, todos se sentiam atraídos por aquele local que parecia ter algum tipo de magia ou coisa sobrenatural. Ficavam as clãs alí a observar na sombra do arvoredo, a ouvir os pássaros que gralham – e que já naquele tempo gralhavam – e a rir com as manobras arrojadas que eles faziam nos ares.
Com isto, moças de uma clã encontravam-se com rapazes de outras clãs, e assim começavam a observar os pássaros juntos. Bem, o resto da estória não preciso contar – pelo menos não agora, porque na verdade, alguns desses encontros valem ser descritos em detalhes de tão bonitos que eram, mas o que importa é que as clãs, ao invés de serem rivais, uniam-se em torno da praça central. Formou-se então o que talvez tenha sido a primeira comunidade, onde cada um ajudava o seu próximo naquilo que fosse necessário, e, em louvor ao que deu origem a essa comunidade, instituiu-se o que hoje é chamado de festival da catação.
Incialmente apenas os casais participavam, meio como se fosse um ritual de fertilidade que representava a capacidade das famílias crescerem e progredirem, mas não demorou muito para que todos na agora cidade, participassem de todas as etapas da festividade.